CHUVA DE LUZ NO METRÔ DE MILÃO
.
Km 303. Chove.
Km 299. Estou voltando sem Milão.
O ponto final –meu papel de esparrela preferido-
se aproxima rapidamente. Ainda haveria tempo
para alinhavar pseudo-versos estraçalhados mas não
consigo… a caneta não me obedece, a mão
também não me obedece. Sinapses perfeitamente
amorais (deve ser por causa da chuva).
Km 265. O trem -mais vulgar que monótono-
ameaça acelerar. Apesar de estar lotado ninguém
existe de verdade, ninguém se olha ou me olha: as
sombras são sombras de sombras, fingem de respirar.
Meus pensamentos soçobram como cegas enguias
em seus opacos mares de pano. Decerto é quinino
que um pouco ainda os escora, quinino e
laços hemostáticos (sonhos? não!).
Km 189. Galpões onívoros, sem meta, passam diante
da janela-espelho. Ás vezes vem à tona um
salgueiro fatigado, um relho sem raiz ou um tambor
gordo de mofo. Nem me dói reacender na memória
a paisagem do poeta Horácio: grutas e fitas
vermelhas. E mais ainda centúrias, grinaldas,
crianças famintas, mas vivas. Vivas! Porque
incorrupta chuva pagã em serena noite sem pecado.
Km 141. Precoce um telégrafo ululando o fim do
Aquário. Uma ninfa torturada pelo axioma de
Savonarola. Címbalos -horror entre os etíopes-
a oxidar-se e estragar-se como esse atávico
vagão rinha de promissórias e rins infectos.
Compulsivo banco da frente comungando
paranoia nas glândulas dos fósseis suburbanos.
Km 87. Mais trilhos se perdem em labirintos
de caspa e desamor enquanto as rodas de ferro
deslizam sobre camadas de fétido creme dental
e capas rasgadas de obscenas revistas
pornográficas. Barbeadores elétricos raspam
corruptos pelos de sovaco de quinhentos passageiros
disfarçados de rubicundos missionários budistas.
Km 19. Enfim desmorona o relâmpago da
luzente puttana maquiada com aragem de
sol que hoje de manhã olhou para o lado de
cá no metrô de Milão. Suas tornozeleiras de
arame magnetizado (como ela sabia que adoro
pernas ostentosas?) brilhavam otimismo na estação
subterrânea enquanto histéricos cirros de
querosene blasfemavam o céu. Instinto de
entregar miocárdio obscuro, mas a imagem
saiu sem peso do metrô e eu cansado...
cansado… cansado...
Km 7. Sempre afirmo que ando
desarmado, mas é claro que
minto. É claro… É?
Km 0. Chegamos (uma viagem verdadeira nunca começa e
nunca termina).
A chuva não para...
Notas:
Savonarola (1452-1498), padre dominicano em Florença, promoveu numerosas "fogueiras das vaidades". Nesses eventos, obras de arte, livros e outros objetos que eram considerados produtos da vaidade humana, luxo desnecessário ou de natureza imoral eram coletados e queimados publicamente. Obras de Ovídio, Propertius, Dante, Boccaccio, Botticelli e Lorenzo di Credi, entre outros, foram queimadas nesses eventos. Em retaliação, o papa excomungou Savonarola em maio de 1497 e o fez queimar na estaca no ano seguinte.
Em italiano a palavra "puttana" significa prostituta.
Esse poema se encontra também no meu E-book intitulado: "Todos os Poemas" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.