CANÇÃO DOS COITADINHOS
Pobres de nós, oprimidos
Pela razão soberana
E pela história, essa insana
Puta de afetos bandidos.
Somos a vítima pura
Nesse pós-Éden, queridos --
Somos a chaga sem cura,
Negra incisão sem sutura.
Num ressentido distante
Temos o ancião, o patriarca --
De Node o pobre monarca
Sob maldição preocupante.
Temos a marca do imundo
Sob vil barrete ou turbante,
Somos, em suma, o jocundo
Erro orgulhoso do mundo.
Quando gritamos 'Justiça!'
Temos em mente a vantagem
Do privilégio selvagem,
Nossa suprema cobiça.
Tudo que em nós é só falta
Vamos pintar na premissa
Clara : o que perde, o que assalta,
Na multidão mais incauta.
Quando um canalha dos bons
Grasna 'Igualdade de gênero!'
Resvala feio no efêmero.
Focinhos rosa ou marrons,
Piscam, carentes de afeto,
Por seus 'direitos' , seus dons...
Mas de Natura um decreto
Sela nosso 'ai!' sob concreto.
Quanto de Kant é verdade
Útil à nossa bandeira?
Quanto nem fede nem cheira?
Nosso ideal de cidade
Tem fundamentos no obscuro,
Tem por critério a vontade --
Sabe a quimera e a Epicuro,
Sonho de pária, de impuro.
Pobres de nós, oprimidos
Em mil Bastilhas rendidas.
Safras de tinto vencidas
Mancham de rubro os vestidos
Nossos na tarde que avança.
Parvos, dementes, bandidos
Marcham na imensa vingança
Contra o real, que esperança!
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