TRAVESSIA

O poema atravessa

como lâmina afiada

o silêncio pesado

que cresce da fala

o trabalho da manhã

ainda não concluído

desta muda linguagem

de sons e fonemas

roídos mecanismos

engrenagens da língua

do sigilo quase mudo

em nossas bocas cheias

de meias palavras

palavra, enigma do som

ainda não pronunciado

cuja sintaxe ainda jorra

como jorra clara a água

da seca fonte da ilusão

que nunca sacia a sede

e jamais extingue a razão

de outras palavras vazias

em seu magro conteúdo

contudo quase tão belas

como uma manhã amarela

palavras ainda livres

de qualquer significado

verbo que nasce calado

letras que formam sons

mas jorram frescas da fonte

atingem o céu, o horizonte

as mesmas palavras belas

nascem de qualquer lugar

fonte de coisas puras

ainda sem nome, sem par

fonte de sons, de coisas

ácidas, alucinadas, ávidas

por formarem versos tortos

por atingirem nossos corpos

e expressarem nossos sons

sons que nos impelem à fala

a mesma fala, soturna

que nasce de qualquer língua

do fácil silêncio de qualquer palavra

não dita, não pensada, não idealizada

deste combate diário

entre o tédio e a alegria

entre o real e a fantasia

enquanto o poema cava

o árido chão da poesia

palavra, difícil palavra

no verso ainda mínima

que nasce, rosa tranqüila

em meio a um deserto

de úmidos sonhos vazios

o poema jamais cessa

seu trabalho inútil e incessante

ainda não concluído, persistente

que cruza a manhã iluminada

enquanto surge o dia

o poema atravessa

lâmina em brasa

a pele do silêncio

o núcleo do nada.

Francis Faria
Enviado por Francis Faria em 12/10/2018
Código do texto: T6474639
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