Miséria e fome
Senhor,
Vistes nos procurar
a mim e a este cão que atende pelo nome de Fome
trouxestes alento para as nossas lágrimas
trouxestes o cântaro cheio da Tua Verdade
e da Tua comiseração
da latência das Tuas palavras
inventa-se a paciência e/ou o desespero
escorrem os momentos para o fim
e o fim é a catedral onde a neblina apagará os círios
que consomem os dias e as noites
inelutavelmente
o homem deglutindo a fome
o cão salivando a fome
a criança aprendendo a fome
subsistem por imposição da vida
crianças faminta arrostando a vida
crianças no lixão mimetizando-se com os urubus
crianças carcomidas pela estultice dos discursos vãos
crianças apedrejadas pelo egoísmo inaudito
crianças pedindo nos semáforos
crianças na prostituição
Dizei, Oh! Senhores,
chefes das nações que sendo várias deveriam ser uma
que almoçam e que jantam e arrotam e jogam o sobejo fora
o campo semeado e a colheita são insuficientes?
a semente, se mente e não vinga e se vinga e se morre?
a miséria é algo tão distante, insólito e obscuro
sem direito sequer a um osso para o cão,
a um pão duro para o dono?
um dia, sentados diante da emoção incomensurável da mansidão de uma aurora
molhada pelo sereno que o vento traz e acordados pelo sussurro dos deuses,
olhando para o que acumulamos,
um dia pressentiremos (será)
que morrer de fome, na miséria é a quinta-essência da indiferença
açodando os círios acesos para que se apaguem mais celeremente todos os dias
sem atentar que tudo que é é eternidade