Minudências

as lembranças afloram dos sonhos solitários

da chuva caindo sobre a primavera mansa e terna

sobre o silêncio dos versos que só falavam de ti

sobre um rio imperecível que só me levava a ti

sobre esta névoa que encanta os meus sentidos

embriagando-me antes que eu possa ver a luz

e o vôo soberbo dos pássaros rumo ao dia aberto

pelo aroma das rosas e pelo fogo estóico do sol

nada havia nas sombras densas e escusas que devoravam a tarde

nada havia no vento onde se escondia o ermo silêncio

não havia nada senão o teu nome no meu sonho

embaraçado na ilusão ignara

teu nome que vivia no murmúrio dos meus lábios

na minha saliva e na minha sede perene de ti

teu nome que nominava os entardeceres do meu mundo

virão inúmeras primaveras e verões antes

do impressentido crepúsculo

e da tristeza e do pranto das palavras não ditas

dos gestos guardados

do carinho escondido entre as mãos que já não te tocam

antes que a memória de setembro

traga novamente a chuva fina e inconstante

molhando as folhas e as terras que não dormem

molhando a argila,

prisão e desespero das almas,

molhando o vento vacilante

nada havia no grito por vezes muito longe,

por vezes muito furtivo

como o orvalho que começa a manhã

e comovido promete quimeras ao dia

nada havia na música das flores

quando a bruma encobria o leito avesso do rio

e suas águas confundiam-se com o ar

e na vida talvez já fosse tarde e cansaço

e no mar talvez já fosse hora de se afogar

no amanhecer,

trazendo o dia lasso e nu,

enquanto ardia o nada no frio do quarto,

vindas de ti seis sílabas cuspiram o cuspe

do descaso e do desprezo

punhais atravessando o ar

lancinantes

o frio fio das palavras ferindo,

pungentes

a dor que em mim causavas não te comovia

nem te apercebias

eras contente em tua acritude

a tristeza consumia este final de primavera

que ainda sendo flores, já era tanta solidão

frágil sépala inclinada a se esboroar

quando será dia novamente se neste momento

a noite tocou-me a pele e os sentidos tornando-me escuridão?

os segundos riscaram as horas

com cacos de vítrea solidão

as sombras arrostaram a primavera

colheram o gorjeio dos últimos pássaros nas árvores

emudeceram ninhos onde faminto de ti eu clamava pelo teu amor

uma a uma em uma outra manhã será primavera

e o estrídulo silêncio falará das cintilações das tardes

e de girassóis tão antigos quanto os versos que te fiz

todos tão inquietos e faiscantes de sussurros e carinhos

pousando,

refletidos na flor fugaz dos nossos quiméricos instantes

e nos olhos teus olhos de papel couche

escuta

a tarde que ardeu entre nós

e as nossas solidões infrangíveis e mitigadas pela luz cinza

e calcinada que entrava pela janela

deixando o gosto fechado e amargo de um novembro

que caminhou irresoluto

para o precário e tangível adeus

deixando versos escritos na insônia de cada poema

deixando os fragmentos da vida

tão lenta por terminar