MÃOS
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
Esta sensação de vazio
tomando conta da casa, do creme
gasto da cal das paredes, da sombra
dos quadros de vidro cansado e fosco,
do tempo que nunca acaba de não passar,
dos instantes anichados num silêncio antigo,
longe das emoções do riso, das chamas ardentes
da vida, das cores que entravam pelas janelas,
às vezes pelas telhas partidas, do eco das palavras
incansavelmente ditas, das cartas brancas por abrir
e das flores imutáveis, eternas, na imponência erecta
das jarras de cristal, do som da água a correr na pia
e dos pássaros depenicando o pão sobre a mesa
da cozinha, da tua mão sobre a madeira lisa
espelhando-se no meu rosto.
Deixaste-me tudo isso. Acordei em Outubro
da tua partida em Agosto. Agora resta-me a raiva
e este vazio da tua presença ocupando o lugar
que te era cativo dentro de mim. Nele cabe a saudade
de uns versos contigo espelhada, de olhos fechados
como a cidade no nevoeiro, renascendo na madrugada
dos loucos dispersos pela solidão das ruas. Só agora
penso como as coisas pequenas nos impõem hábitos.
Sofro com a tua ausência, mas, com a alma em carne viva,
pulsa-me outra realidade, no recôndito cofre da memória:
apercebo-me, no desfiar do dia imóvel, como não haverá
pedra sobre pedra no meu corpo, nem pele que lhe sobreviva,
pois jamais terei o voo de pluma em movimento
de carícia de mãos como as tuas.
Apenas ficou o vazio. Lembrança das tuas mãos
raptadas numa maré de névoa
pela impiedade contida
no vento.
José António Gonçalves
(inédito.23.10.04)