Que venham

que venham as manhãs

que venham as flores e as folhas sem pressa

e gravitem num beijo de pétalas orvalhadas

e nas franjas melodiosas do vento balouçando

ouça-se o canto antigo e inolvidável dos pássaros

que venha um céu azul embebido em tons voláteis de azul...

e de distâncias

que venham as sombras derramadas das luzes da madrugada

traçando geometrias

pelas vidas inaparentes, de repente

pelas árvores antigas e quietas dos quintais

e pelos dormentes arranha-céus

onde a manhã se alastra como um rio vertical

fazendo pedaços do dia irromper por entre

as colunas de concreto e vidro

inundado a vida de enganos e devaneios

ou dando cor a incerta pétala de uma flor

que venha o tempo inconsútil

acordando flores nas sacadas

trazendo jardins suspensos e navegáveis

paisagens de momentos sem as inúteis horas

que arrostam rosas, lírios, bem-me-queres

arrosta a vida estonteada e perdida

bem-te-vi

pousado na platibanda da manhã incipiente

num lusco-fusco de algodão no mês de março

a vaticinar em tom de canção: bem-te-vi, bem-te-vi

folhas caídas dormindo nos jardins

fazendo a seu critério o seu instante

que venham os outonos

que cubram-se os caminhos de folhas secas

policromáticas

em tons de terras úmidas

e ventos soprando em verso e prosa

e modulem a atmosfera para entornar

a intangível poesia

do primeiro movimento do dia

num mundo desatento

pelos ventos dos medos assustado

obliterado

e inabitável