E assim vamos vivendo IV

e assim vamos vivendo

pisando a barranca vermelha

limite entre a terra e o rio

o pé na pedra e no limo

o pé no tempo escorregadio

esperando que amanhã seja o agora

esperando como quem ora

para o tempo imaginário

e inconstante que pastoreia os dias

e traz momentos e medos

rabisca e enche o ar de segredos

e a inconstância da vida para lhes decifrar

esperando a adaga a dilacerar a última reposta

em meio à cerração que adorna e engole

o contorno das manhãs singelas

os passos e as sombras dos passos

que andam sobre a solidão das luas

infiltrando-se incipiente pelas vielas

o pensamento a dizer-nos

mastigando o que somos

a voz balbuciada

e o grito tartamudeado

o ranger das portas e janelas

suavizado pelos ruídos

das noites que não dormem

e enchem de sons

lençóis e travesseiros

o soluço sufocando

aguardando o silêncio

(que não vem, nunca virá)

para se fazer ouvir

dentro do esboço das noites

dentro das noites a viver por nós

balanço de mar ondulando

num negro azul zonzo e a sós

a infinda luz do sol

percorre janelas melífluas

vaza de dentro de alabastros

alvorada aberta depois da noite compassada

e acalanto

a noite toda fez-se de um pranto

de olhos secos

e tanto, e tanto e tanto

e tanto sonho por viver

e por não viver

desencanto

a noite

o tempo

a distância olhando para a morte

a insustentável escuridão do dia

eu diria

que é tarde para uma lágrima

tão cedo para dizer alegria

a vida

toda a um canto

insonte, insone, insonhável

a vida vivida para a morte

tudo mais é imponderável

a vida é boa

a vida é boba

a vida é tola

a vida à toa

é boba

é boba

é boa

e assim vamos vivendo

entre a ausência e a lágrima

entre cantigas de infância

e os medos guardados no grito

inaudível

machucando dentro de nós

e assim vamos vivendo

entre o barco cansado e o porto

entre o fratricida e o morto

entre a fome e a colheita do trigo

entre o nada e as mãos abertas

num gesto de solidão ou de abrigo