Zome

De batismo chamo-me José

na infância e na adolescência

chamavam-me de Zome

porque Zome?

o que vem a ser Zome?

de onde vem isto?

o que vem a ser isto ao certo?

perguntará alguém mais curioso

visto que tem sempre algum por perto

Eu vou contar,

eu explico,

enquanto o passado respira e pervaga quintais e saudades

e o pensamento olha para os dias que ficaram sob o sol

causticante

e a neblina empoeirada das manhãs

envelhecendo com a memória

silencia e se desprende deste sabor

de terra desatenta

Como quase tudo nesta vida "Zome" tem uma explicação

Quando nasci, meu irmão mais velho que eu três anos,

por não saber dizer homenzinho

chamava-me de Zominho

Zominho, Zominho, virou Zome

e assim ficou

atravessei a infância e a adolescência

com Zome sendo meu nome

A vida fez e desfez dias e noites

o circo de lona rasgada foi embora, partiu

foram embora os parques de diversões

foi-se a música oferecida de fulano para fulana,

como prova de amor e admiração

ficaram no ar sons e nomes atravessados de amores...

que de amores ainda serão?

foram-se as meninas que amei em silêncio

no prenúncio das mulheres

foi-se a rua de terra, de folguedos

os dias criando brinquedos

as noites inventando medos

a mão chamando

pra muleque entrar

pai vai chegar

entra pra casa quem não quiser apanhar

o mundo chorou e riu

cresci

crescemos eu e a saudade e os corpos mirrados

dos amigos e das amigas de então

todos cresceram

ninguém falou em saudades ou solidão

os retratos amarelados escondendo-se do tempo

Quando cresci

quem não me conhecia/conheceu

como o Zome lá da infância chama-me de José

(Bem poucos chamam-me de José

parece-me que há nisto uma certa dificuldade

que até agora não entendi: como este nome sui generis

pode ser tão difícil de ser lembrado,

chamam-me de tudo, Pedro, Paulo, João...

mas de José não chamam não)

Sendo José,

por consequência óbvia e corriqueira, virei Zé

(Mas assim como José, poucos, bem poucos, me chamam de Zé

aqui não por dificuldade própria da língua, mas, talvez, por comiseração

ou aversão aos simplórios de nomes simplórios... não sei

cada um que tire a sua conclusão

A maioria chama-me Leite,

sem perderem a oportunidade de fazerem

a famigerada, infame e gasta piadinha

quando nos encontramos no cafezinho:

vou tomar café com o Leite

ria quem puder

Chamam-me ainda de

José Leite

José Milk

Zé Leite

nos anos 80, no auge da desolação, chamavam-me de Zezão

miúdo que sou o apelido era uma aberração semântica

e uma grande piada, fisicamente falando

Hoje só o passado e a família ainda me chamam de Zome

minha irmã, por um carinho desmedido que acaricia todos os meus dias

quando nos falamos, chama-me de "Me"

Sendo José,

como todo bom José

gastei pedra

pé ante pé

andei

me arrastei

virei

mexi

remexi

fiz xixi no céu

me isolei

me degluti

regurgitei-me

vassalo que sou

um dia senti-me rei

perdi a fé

em mim, nos santos e nos homens

vi-me incréu

"E agora José?"

chorei

cravos vermelhos

pus-me de joelhos

nos desertos da mania

quando, quando e como a alma ardia

entreguei-me à poesia

estraguei a poesia

ao meter-me a escrevê-la

Ainda ouço,

em momentos de alegria, de catarse,

da velha dor incestuosa

ou nas noites de cismas ardendo em mim

ainda ouço

vindo dos quintais pungentes de liberdade

como um sussurro tardando a passar pelas tardes

sem tempo e sem idade

andando, tropeçando

caindo e levantando como um sol dilacerado

o antigo apelido:

Zome, Zome, Zome...

que me chama pelos lábios ressequidos de meu irmão

naquelas grotas, lonjuras, barro, fome

e o vento tangendo a poeira e o grito magro do sertão

ainda diz

vem pra casa Zome...

não come barro Zome...

Zome, Zome, Zome...

mas, Zome no dia a dia

nunca fui mais

nunca fui mais não

O que em mim era Zome por pura alegria

por vivacidade e vadiação do meu irmão

agora é Zome quando a saudade acaricia e alicia e cicia

os redemoinhos girando memórias nos terreiros

de instantes zunindo nos galhos secos dos pés de pau

encobrindo com a poeira os dias que não vingam

e morrem dentro de mim,

infatigáveis,

pela derradeira vez