Preciso ser delicado

"Preciso ser delicado

Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida"

Vinicius de Moraes

In Nova Antologia Poética. Ed. Cia. das Letras. 2008. Página 31.

Preciso ser delicado

todo o tempo, delicado

preciso ser poeta e água de choro

e o soluço ritmado depois do choro

e o ritmo dos anjos cantando em coro

esperanças

preciso ser o beijo nos olhos que choraram

e choram os dias sem um destino

que os viesse tocar

sós...

tão sós como as velas gemendo sem peso

aos ventos em alto mar

O que eu fui ficou enlaçado

nas estrelas azuis me espiando

ficou no choro e no riso

ficou no instante conciso

na saudade dentro do retrato

ficou no ruído do vento falando

às velas mudas dos barcos

ficou na ausência do ato

ficou no sal solidificado do mar

ficou no chão que pisei

ficou no chão a me pisar

Sombras seculares andam nos becos

atritando as pedras do calçamento

tirando do ventre frio das pedras

faíscas e indizível lamento

incendiando palavras

acendendo fogueiras na memória

arrostando a mansidão dos silêncios

delineando meus sonhos e o meu destino

fazendo dos dias campos semeados

de tanta ventura, de tanto desatino

por onde só se vai e se esvai

no sem caminho das nuvens

e nas distâncias que me perdem

onde cada pedaço meu

sou eu mesmo que despedaço

e me estorço

e me desfaço

e me refaço

entre os espaços e os medos

entre a compreensão e o perdão

entre poemas de uma tristeza longa e exausta

uma tristeza que dorme esquecida na minha mão

entre poemas enlaçados ao passado que nunca passa

condenados a mais de cem anos de solidão

deixando no ar este aroma de cravos e rosas

entre o sim expletivo do infinito

e a eternidade opressora do não

enchendo a vida com o grito infindável

crepitando na escuridão saindo da noite

Vê, amor, que há poemas onde o amor só nasce para sofrer

poemas que as minhas mãos teimam em escrever

inquietas em meio a erva daninha dos jardins abandonados

dos homens e das mulheres desamparados

o coração delicado decepado de forma irremissível

bateando nos lagos impuros

faiscando passados e culpas

no coração onde o amor é verso e dor

em tudo o que o momento deixou de ser ou não foi

nas lágrimas inertes que invento de repente,

sem poesia aparente,

invento simplesmente,

condescendentemente

para chorar tanta tristeza que se deita

e se aninha

e se enrosca aos meus pés

por tudo que fomos

por tudo que és

e arde em febres indizíveis

e sofre

bebendo lentamente o claro argênteo da lua

vagando e tropeçando na rua

e nas miragens que o vento volitivamente traz

de desertos mirabolantes

Invento lágrimas

para me sentir comovido e minimamente humano

em face da melancolia

adaga dessemelhante que se roça em mim

tocando e lanhando o meu corpo

e o mistério que me alucina

ao entardecer das paisagens sem sol

sem a corda vermelha no céu tesa e estendida

sem riachos ou rios seguindo

o caminho das margens inapreensíveis

no mar sem equilíbrio

nas nuvens desmesuradas que passam me/ditando

no meu olhar a olhar

o olhar confrangido do anjo,

triste e profundo

na felicidade que antes de ser

a minha felicidade,

a tua felicidade

a felicidade que se oculta bem fundo

é o sentimento levado pela cabotagem

das estrelas enamoradas e pequeninas

pervagando pela senciência do mundo