"SONETO CYGNE" (tradução)
Minha amiga Cici, num de seus sempre "bevenidos" comentários me lembrou do famoso soneto Cygne (Cisne ou Signo?), de Mallarmé, cujo último terceto (o seu fecho) é realmente incrível (mas de difícil tradução para a língua pátria):
Fantôme qu'à ce lieu son pur éclat assigne,
Il s'immobilise au songe froid de mépris
Que vêt parmi l'exil inutile le Cygne.
Segundo Sérgio Alcides (*), o tradutor de poesia deve ser idealmente o oposto do indivíduo mesquinho, que faz tudo de má-vontade, e onde põe a mão deixa a mancha baça do seu desleixo. Ele pode errar, mas até no erro faz de tudo para errar com brilho. Inclusive porque sabe que na tradução não erra apenas em seu nome: a palavra que ele escreve não é só sua.
Já o pobre autômato pouco se importa. É incapaz de corrigir os erros que comete (ou mesmo de notá-los). Isto sim – a pequena vileza humana – é que não tem tradução. Nem precisa: a boçalidade tem sua própria língua, tristemente universal.
Enquanto o preguiçoso se contrai diante do menor desafio, o tradutor de poesia só se revela nas empreitadas temerárias. Seu ofício requer a coragem de se expor ao erro a cada sílaba: nada de objetivo o protege, pelo menos não diante dos melhores leitores (que são os que ele ama).
Por exemplo, podemos imaginar a vertigem que acomete o tradutor da poesia de Mallarmé, que Manuel Bandeira considerava "intraduzível por sua própria natureza". Nela, "a emoção poética está rigorosamente condicionada às palavras".
Terá sido por isso, segundo o modernista brasileiro, que Mallarmé disse a Degas que a poesia se faz com palavras, e não com sentimentos. Quem se aventura por aí se condena de saída ao discutível – e essa condição problemática é das características mais especificamente poéticas da tradução de poesia.
No Brasil os dois tradutores que mais se dedicaram ao poeta francês foram Augusto de Campos e José Lino Grünewald. Nenhum dos dois recuou diante das dificuldades (ou até impossibilidades) de um texto como o famoso soneto do Cisne ("O virgem, o vivaz e o viridente agora", para Augusto; "O virgem, o vivaz e o belo neste dia", para Grünewald).
Com um jogo de iniciais minúscula e maiúscula, o soneto contrasta o "cisne" e o "Cisne" – o vivido e o signo a que ele escapa fatalmente, forçando uma espécie de exílio da significação. A problema se cristaliza no último terceto:
Fantôme qu'à ce lieu son pur éclat assigne,
Il s'immobilise au songe froid de mépris
Que vêt parmi l'exil inutile le Cygne.
A versão de Augusto de Campos é muito fluida e rigorosa na versificação. Preserva o verso alexandrino – com sua difícil "cesura" ou pausa na sexta sílaba – mesmo onde o original o dispensa (o segundo dos versos acima é um dodecassílabo simples):
Fantasma que no azul designa o puro brilho,
Ele se imobiliza à cinza do desprezo
De que se veste o Cisne em seu sinistro exílio.
A versão de Grünewald, posterior, sacrifica essa legibilidade, essa fluidez, com uma decisão para lá de complicada:
O fantasma, que ali seu puro albor designa,
Imóvel, gélida quimera escarnecida,
Que veste o Cisne o inútil exílio do Signo.
O leitor atento está agora procurando no original onde estaria a palavra "signe". Provavelmente, ela se esconde sob as plumas de "Cygne".
Deixemos o próprio tradutor se defender; ele argumenta que pretendeu "fazer uma tradução interpretativa", e por isso decidiu introduzir no último verso uma palavra que não consta do original. "Isso nos parece instigante, quase que obrigatório", continua Grünewald, já quase nos convencendo. "Instigar" é uma das finalidades clássicas da poesia, sua melhor razão de existir.
Tal instigação se deve "à homofonia, em francês, entre as palavras 'cygne' (cisne) e 'signe' (signo)". O original frisa essa questão com o verbo "assigner", que Augusto não hesitou em traduzir com "designar".
"O poema inteiro é um Signo, exilado da fala comum do homem", afirma Grünewald. É verdade, mas sempre será discutível se isso justifica ou não a metamorfose tradutória de um cisne em signo, mesmo que seja um cisne com C maiúsculo. Além disso, a idéia de uma "tradução interpretativa" também é questionável – embora o tradutor aqui não cometa o pecado capital de confundi-la com uma "tradução explicativa".
"Pode ser uma audácia, uma inconseqüência, mas... jogamos os dados", conclui Grünewald, no seu melhor argumento. Se errou, errou com brilho.
A discussão, instigantemente, faz parte dos efeitos do soneto de Mallarmé. Talvez Augusto de Campos não concorde com o lance de dados jogado por Grünewald. E pode ser que surja um terceiro tradutor para execrá-lo com a maior fúria. Tradutores de poesia nunca se entendem.
A favor de Grünewald, posso dizer que o cisne, em poesia, está habituado às metamorfoses desde a Antigüidade. Ovídio conta como o rei da Ligúria foi convertido nessa ave, que escolheu os rios e os lagos para não morrer em chamas como seu primo, Faetonte, queimado ao roubar a carruagem de seu pai, o Sol.
Garcilaso de la Vega menciona o caso do cisne branco "que en las aguas mora, / por no morir como Faetón en fuego". Garcilaso foi a maior glória poética do Renascimento espanhol: comovente figura de poeta amoroso e cavaleiro valente, morto em combate aos trinta e poucos anos de idade.
O tema profundo de sua obra inteira – entre o cisne e o signo – é a permanente contemplação de um amor irrealizável. A poesia, para ele, tornou-se uma forma de posse espiritual, em terra e nesta vida, exercida no lugar de uma posse plena só concebível no paraíso.
(*) "Aula 6: Errar com brilho", publicado "in" www.portalliteral.terra.com.br.