Cenas do cotidiano

Chego ao prédio onde moro

na portaria

uma senhora de certa idade

discorre afetada

sobre as mazelas humanas

do homem e seus delírios de poder

a sua insaciável ânsia de ter

fala da necessidade de colaboração

da falta de união

o porteiro parece ouvir

ou seria os ossos da profissão?

o porteiro "ouve" a tudo e a todos

Ao passar cumprimento os dois

o porteiro responde

ela não

talvez que por estar tão encantada

com o próprio discurso

não ouça nem a si mesma

talvez por que o mundo, neste instante,

gire ao seu redor e o cumprimento que eu lhe fiz

tenha se perdido em algum buraco negro

da galáxia que ele representa neste momento

talvez por que estas coisas todas das quais ela fala

só sirvam para os outros

o que é mais comum

e o outro incomoda que é o diabo

é preciso exorcizá-lo com discursos veementes

Parece-me

com base na experiência que o prédio me dita,

que algumas pessoas,

como o passar da idade,

vão se deseducando

ou será que foram sempre assim

e a gente não as conheceu antes?

assim como vão encolhendo fisicamente,

outras física e intelectualmente

as orelhas crescendo

as rugas enrusgando a alma

Pego o caminho da roça

olho minha caixa de correio

nada de correspondência

bato em retirada

o "outro" não quer falar comigo

pelo menos por enquanto

pelo menos por via postal

o que hoje, diga-se de passagem,

não é normal com e-mail, celular,

WhatsApp (que diabo vem a ser isto?)

e coisa e tal

o meu "outro" manifesta-se abundantemente

sempre no final do mês

travestido de contas para pagar

Talvez, quase certeza,

na cidade onde nasci,

perdida no sertão nordestino

ainda escrevam-se cartas

e lambam-se selos (aqueles que ainda têm

alguma gota de saliva para fazê-lo)

e esperem-se os Correios ansiosamente

antevendo as palavras que virão

no bom e velho e afetuoso papel

Subo pensando nestas coisa todas

tolas

tão corriqueiras e banais

quem não é capaz de responder um bom dia

um boa tarde, um boa noite

agradecer que lhe segurem a porta do elevador

que lhe segurem o portão de saída

tem o que para dizer sobre a soberba humana?