O sofá não é lugar para os fracos

Aposentou-se há mais ou menos 10 anos

Desde então os seus dias

são dardos lançados ao ar

cujos paradeiro e destino,

invariavelmente,

é o pacato e mudo sofá

Dias que nascem exóticos

narcóticos

há mais de uma década cumpre o mesmo ritual

café tomado

ainda mal informado das excrescências do dia

sentindo falta do inferno

sentido falta do capeta a proclamar o fim do mundo

sentindo falta do ópio televisivo

aloprado de tanta calmaria

para precaver-se de ser enganado

e manter-se um homem atualizado

refestela-se no sofá

anestesiado

os olho secos

jamais chora

ou demostra qualquer tipo de emoção

hipnotizado

indolente

crente

não só crente, como crédulo

cheio de certezas insofismáveis

liga a tv

e para começar bem o dia

já tendo perdido o arrebol

rende-se às amenidades

da litania das notícias do futebol

Depois notícias e "fatos"

misturados com boatos

dos programas de variedades

fofocas

futilidades

mexericos de toda sorte

entrega-se ao estrume da morte

subliminar e subjacente

numa leseira demente e contente

de quem ouviu dizer que leite quente dói o dente

de quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde

sandices ditas como verdades

muito "acho"

muito "pitaco"

em transe, engole tudo que a tv lhe dá já mastigado

como se ele fosse um filhote de passarinho

e que ele posteriormente regurgitará

como se fosse a insofismável Verdade

recendendo sabedorias como um Sócrates midiático

e seu oráculo eletrônico

No almoço, arroz com feijão

tv ligada

prato na mão

a mente embotada

sem tirar as nádegas do sofá

assiste ao jornal local

para não perder nenhuma informação

entre uma garfada e outra

um pouco mais dos dejetos da vida

fétida e pustulenta

e da mental opilação

O dia, lá fora, caminha

sob o sol de um final de inverno

num agosto petulante e terno

brincando de ser verão

onde floreia corpos, pernas e passos

andando no calçadão

O nosso aposentado sesteia

cochilando no sofá

ao fundo o blá, blá, blá, blá...

adstringente da televisão

ninando-lhe com seu ramerrão

obstinado, incessante

e fatal

a mente, é um peixe de aquário,

atávico e inerte

embrulhado em jornal

Na tarde o silêncio da casa se compraz

em se entregar aos programas policiais

No dia banal e infindo

a mão sonolenta e peregrina zapeia os canais

buscando o circo

seja ele de cavalinhos, de antas, ou de outros animais

ou embrulhado no jornal dos horrores

com tanta gente oferecendo

a tirana mixórdia para o rebanho displicente

indolente

que a engole convindo

zapeia buscando a estupidez da vida

na telinha que alucina

que mata e aleija sorrindo

nos programas sensacionalistas

chauvinistas

onde a matéria prima é a ruína social

os criminosos mais bárbaros

os crimes mais execráveis

a degradação humana perorando na sala

a miséria exposta feito bosta nas valetas

como um fratura

que não calcifica

que não tem cura

o bordel político

o Estado sifilítico

o desvalido faminto e raquítico

com um cérebro paralítico

aberrações usufruídas e festejadas

índices de audiência

À noite os sonhos estão no ar

melosos ou desesperados

novelas e jornais

convertem-se em pré-canção de ninar

NOTICIÁRIO NACIONAL

Chacina do Carandiru

dos meninos da Candelária

do Vigário Geral

chacina na porta do bar

chacina em rede nacional

assiste a todas

cada vez mais animado

deslumbrado

e digressivo com o faroeste nacional

assiste

com a alma ausente

o deprimente deambular

dos meninos

e meninas

que se drogam pelas ruas

tentando se enganar

e chamam caixas de papelão de lar doce lar

"escândalos"

corrupção

todo dia a mesma história chinfrim

que não tem começo nem fim

desde 1500 é assim

nesta terra onde se plantando tudo dá

e dependendo de quem pede ela dá sem nem plantar

a apodrecida grei

mandava suas singelas cartinhas

pedindo favores ao rei

Intervalo entre uma miséria e outra

entre a tragédia nacional

e a tragédia internacional

O homo sapiens se remexe e resmunga no sofá

os estertores da extinta? cauda a incomodar

se remexe e resmunga no sofá

sem no entanto tirar a bunda de lá:

"Assim não dá, assim não dá..."

NOTICIÁRIO INTERNACIONAL

Avião cai em Toka Gadu

morreram todos

sangue misturado à gasolina

fezes, suor e urina

e ele nem se azucrina

os olhos fixos na telinha

a desgraça como rotina

Furacão em Ku Dojudas

extravagantemente devasta a população

os olhos sequer se movem

em completa encantação

Trem descarrila no Caguistão

mata 236 e deixa 408 feridos

e ele fica esperando passar as imagens

do primeiro ao último vagão

para ver se não lhe escapa

algum cadáver fujão

Onde é Toka Gadu

Ku Dojudas

Caguistão?

Qual a relevância destas notícias

para um pacato brasileiro

desnutrido e desdentado

um Macunaíma, talvez?

Isto não importa

se houver sangue e desgraça

a mídia nos mostrará

fazem da nossa cabeça banheiro

Sangue e miséria jorram na tela

labaredas gritam na televisiva janela para o mundo

(ou seria melhor dizer: para o fim do mundo?)

convulsas as labaredas gritam

a ânsia sanguinolenta

a pulsar-lhe na retina

a tragédia estagnada na sala

defecando

numa mente que usam como latrina

Ele é um homem bem informado

ele sabe tudo o que é relevante

do Ribeirão da Ilha ao Ondeéquistão

sabe diferenciar com precisão

quem é bom

quem é ruim

onde é que está o bem

onde mora a danação

Nas eleições

bem informado

e ciente de que as coisas não são bem assim

como diz em seu discurso original

que todo político é ou será ladrão

vota no que ele chama de "o menos ruim"

Passada a eleição

sem qualquer responsabilidade pelo que o cerca

sentadaço no indefectível sofá

assistindo aos indefectíveis noticiários

ele resmunga de si para si

para não ter o trabalho de abrir a boca e se cansar

"assim não dá, assim não dá..."

Graças à televisão

ele é um homem de vasta visão

com um discurso despossuído

desmilinguido

Entre um jornal e uma novela

entre um programa de futilidades,

digo de "variedades"

e os do esporte do povão

ainda achou um tempinho

para um infarto despótico do coração

Guerras

tragédias humanas e sociais

lamentos da vida besta e tola

assaltos

corrupção

a canalha

ladrão saindo pelo ladrão

jogos de poder

loucos de toda sorte

a escória social

os militantes da morte

vísceras expostas

o circo de horrores dando função na sala

são-lhe coisas indiferentes

banais

Ele é muito racional

nada lhe comove ou lhe faz mal

além do que

o mundo foi feito para se acabar mesmo

ele só está se antecipando ao fato

se adiantando ao fim

assistindo-o de camarote

com volúpia

em tempo real

só mudando de canal

com o controle remo(r)to nas mãos

sem precisar tirar a buzanfa do sofá

Acha a vida moderninha bacaninha

com este "guru" em plena sala

trazendo-lhe tanta informação indispensável

e impensável

e muita orientação

da saúde à unha quebrada

da política à religião

de como educar os filhos

(cada vez mais mal educados)

e aumentar a erudição

até que o humor negro da sina

numa disputa intestina

obscureça-lhe o entendimento e a arguta visão

e o ponha a repousar

até o juízo final

ou a próxima encarnação

isto quem decide são os dogmas que acumulou

assistindo televisão

Lamuria-se por que na época da segunda guerra

os lares não tinham televisão

para a gente poder assistir

sem tirar o bundão do sofá

a um reality show num campo de concentração

onde os povos da babilônica aldeia global

votariam em quem deveria viver ou não

quem que iria pro gás

ou pro reles paredão (no caso aqui de fuzilamento)

ou o espetáculo espetaculoso da "Little Boy" e da "Fat Boy"

dissolvendo milhares de pessoas na exuberante explosão

que fez o dia do Japão parecer noite de São João

condenando outros milhares a dias de provação

ia ser tão educativo, informativo, lenitivo,

humanitário e relevante para a alma e o coração

Ia ser tanta diversão que uma vida seria pouca para tanta pândega

Por tudo que já viveu

por tudo que já viviu

só uma coisa ele lamenta, inconsolável,

na sua vida (que morreu sem ele saber):

o tempo que falta no dia para ver mais televisão

e aprimorar seus conceitos à luz do Iluminismo

caboclo que vigora aqui então