Alteridade
Ao historiador Jörn Rüsen
 
A essa mesma hora,
um cara qualquer que não conheço cruza a rua
em Pequim, em Cartum ou em Beirute
sem que pareça fazer a menor diferença
nossa mútua presença no mundo.
 
Não sei se carrega pão na sacola,
sequer sei se tem uma sacola,
ou filhos, ou cicatrizes,
ou religião.
 
Pelos ditames sectários da ideia de civilização,
seríamos supostamente um para o outro ninguém.
 
Mas a presença do ausente se sente pelo que de humanidade se compartilha,
e por não sermos ilhas por oceanos apartadas, umas das outras isoladas,
o externo ninguém para cada qual se transforma em alguém.
 
Não existe uma verdade inequívoca,
mas uma miríade de verdades multiformes,
tramadas com saberes pelos povos legados.
 
À luz de um entendimento mais profundo,
somente com um colcha de retalhos
é possível se cobrir o mundo.
 
E assim desfalecem ideias milenares
de que as civilizações são díspares pilares
a conformarem as flamas de naturezas humanas,
como se a diferentes nações coubessem distintos corações.
 
A humanidade é somente uma,
não obstante suas diversas culturas,
de modo que para superar os abismos do mal,
há que se propagar o pensamento humanista intercultural.
 
Pois se o comum a todos os seres é a morte inevitável,
esta advém do fato inexorável de habitarmos corpos perecíveis,
cujos prazos de validade impedem-nos de almejar a suposta eternidade.
 
E o fato de sermos carnes, ossos e sangue,
nos iguala de forma que não podemos ser estanques,
e percebendo essa similitude, o indivíduo compõe a multitude,
de forma que seu olho se conforma a partir de múltiplos olhares.
 
E assim, a indiferença fria,
aos quatro ventos proclamada,
transforma-se na empatia conquistada.
 
Então, alguém que ainda não conheço,
formado de tripas e sonhos como eu,
e que cruza a rua em Pequim, em Cartum ou em Beirute
carregando no coração as paixões e as dores humanas,
me ensina que as sabedorias do mundo persistem
quando em paz as diversidades coexistem.
 
E por isso eu me transformo
naquele cara que cruza a rua
em Cartum, em Beirute ou em Pequim,
pois seu coração pulsa forte dentro de mim
da mesma forma que pulsa o meu em seu peito.
Portanto eu respeito seus modos de ver o mundo
e me emociona a humanidade de seu sentir profundo.

Junho/MMXV
 
Fábio Amaro
Enviado por Fábio Amaro em 18/06/2015
Código do texto: T5281022
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