A Propósito do Absurdo
Deitado sobre a cama,
a cidade funciona ao redor.
Sei que na clausura do quarto —
aquelas paredes intransponíveis ao corpo,
o chão frio e indiferente —
não sou mais do que qualquer outra forma na rua,
como os jornais que voam na noite,
as buzinas impacientes,
as sirenes avisando que a ordem social foi maculada,
ou as lixeiras que desabam lançando gatos pelos muros.
Meu corpo está limitado,
mas o pensamento alcança os auges do absurdo.
Saio à rua, entretanto.
Empunhando duas espadas
que criei para minha própria ruína,
vou matando o meu dia.
Com a maior, eu o entrecorto
em pontos objetivos que me dominam.
Com a menor, eu o extermino
lentamente em vinte e quatro punhaladas.
Construo um barco sobre o oceano de pez,
sabendo que não se moverá.
E, enquanto isso,
numa caçada selvagem,
brandindo a arma que apenas verte suor,
vou engaiolando avidamente
a valiosa fauna brasileira de seis bichos.
E o absurdo aguarda.
O absurdo aguarda
sob os escombros transvestidos de ordem,
onde rastejam os vermes, em sua importância.
O absurdo aguarda
como uma realidade iminente,
recôndita nas atitudes reprimidas.
Entre as plantações de blocos
do plano do banal,
qual rato que se enfia em meio aos dejetos,
o absurdo espreita, inerte.
Há algo que pulsa no músculo do absurdo,
qualquer coisa que queima e que não se pode conter.
Absurdo é sempre ligeiro,
e num instante já adentra em qualquer homem comum.
E então as horas são esquecidas,
e a rotina voa apitando pela janela.
E rasgam-se os papéis,
e quebram-se as convenções.
E a liberdade,
a real,
vem varando as árvores da floresta urbana
e cresce, entrando no mais ínfimo dos seres.
Também no homem.
E então esquece-se os meses,
as semanas e os anos.
Também não haverá segundas para odiar nem sextas para almejar.
Apenas o sol
queimando sobre o chão,
e o caos necessário sobre a Terra.