A HORA DA CHEGADA DA POESIA
José António Gonçalves
não conseguirei
jamais saber
a que horas a poesia chega
para me preparar
convenientemente
para recebê-la
se houvesse uma maneira de saber
a que horas a poesia chega
eu ensinava-a nas escolas
e pedia aos alunos
e aos professores
para escreverem na palma das mãos
sobretudo a hora
porque a poesia nesse momento
visitaria a sala de aulas
voando por sobre as nossas cabeças
e nós desejaríamos que ela
jamais fosse embora
existe uma forma de adivinhar
a hora da visita da poesia
aos campos de flores
e às estradas usadas
por crianças e por soldados
ou às igrejas e às cidades
onde os poemas são dados
a quem os querendo tanto
se esquece do sofrimento da espera
e os guarda dentro de si
em livros tão gastos tão velhos
que devem ter origem noutros povos
e se destinam a outra era
a um tempo que decerto existe
à vista de todos
por aí
basta que se peça ao papel branco
para nos dar a poesia que nele se esconde
e gentilmente ficarmos à espera da ocasião
em que tudo se revelará
perante os nossos olhos
ainda estonteados de esperança
no ansiar por esse momento
de deslumbramento
e é então que a poesia chega
um pouco antes
ou mesmo muito depois
da hora prevista
e risca palavras soltas nas folhas de papel
e alcança o branco da cal nas paredes
e vai por esse mundo fora
pinta o sol com tinta Quink
e agasalha-se à sombra do luar
isto porque à poesia
são sempre garantidas
todas as hipóteses de ser ela própria
a escolher o lugar onde descansa
agora vou confessar o meu
segredo de poeta
que oculto a toda a gente
desde os meus dias de criança:
é que se a poesia hoje
chegar até minha casa
eu não vou estar lá à espera dela
nem estarei em qualquer outro lugar
porque à hora a que ela me chega
estarei eu procurando por ela
no lugar onde ela descansa
estarei congeminando
se nesse deslumbre
sou eu quem busca pelo remanso
doutro papel branco que seja meu
vestindo um pedaço de céu
ou um punhado de terra
e então
para minha própria surpresa
saberei a hora a que a poesia me visita
e em que lugar ela encerra
o poema que sempre foi meu
e nele finalmente
composto o calendário
trazendo tudo do passado
para a leitura do presente
eu me deito e descanso
como se sempre tivesse estado
de tudo isto ausente
José António Gonçalves
(20.01.04.inédito)