O belo está nos olhos da alma
O quadro se dá ao olhos de quem quer ver
A canção aos ouvidos de quem quer ouvir
As palavras às bocas de quem quer falar
e às mãos de quem quer escrever
O poema se dá aos olhos de que quer ler
Mas as coisas, postas em si, quedam-se, não sendo boas nem ruins,
belas ou feias
Quem lhes dá sentido e vivace é o espírito de quem as contempla
O bom poema
A linda canção
O belo quadro
As bonitas palavras
Só se dão àqueles que olham, leem, ouvem, falam, com a alma
Cada um só vê/ouve aquilo que consegue ver e/ou ouvir
A canção
As palavras
O poema
O quadro
Não são os mesmos para todos igualmente
Há os que se encantam
Os que se espantam
Os que se extasiam
Os que se comovem
Os que mastigam a imaginação
Os que se redimem
os sentidos e os sentimentos remexendo
jardins, colhendo chuvas, semeando estesia
lembranças airosas a nos chamar febricitantes
Há aqueles para quem
As bonitas palavras
O belo quadro
A linda canção
O bom poema
São apenas "coisas" sem nexo
Eterno cansaço
Sepulcro de maluco
Uma horrenda fealdade
Estes são os ausentes de si, com suas visões tacanhas
A alma murchando em um único pensamento
São os bizarros, os violentos, os soturnos
São os que idolatram as guerras e a sujeição
Os arrivistas
Os néscios para os quais a ignorância é tão crassa
que são ignorantes de si mesmos
E por não conhecerem a serpente que carregam
vivem de julgar o outro, viver a vida do outro
sem atentar que o outro só acontece e se manifesta dentro de si
e o que o decifra á a alma que se tem,
ou melhor: a alma que não se tem
São os que olham para o horizonte e só enxergam abismos
É preciso deixar os terremotos individuais acontecerem
A dor deixar de ser um insulto
Apascentar-se da ternura insonte, filha do amor
Envolver-se, na penumbra da tarde, na beleza do lento escuro
Sorrir antes do motivo da lágrima que tateia o instante da dor
Tocar o amor com todo o ser
E desmanchar o amor acreditando em cada consoante, cada vogal
E olhar com amor a forma e o movimento, o gesto e a palavra
E deixar o amor chegar ou partir como chegam e partem as nuvens
E na doçura do tempo lambuzar de amor a melancolia das almas tristes
E viver a sombra e o gesto do amor que ainda outro dia era poesia
O resto é chorar
para lavar os olhos da cegueira
e voltar a enxergar como enxergam as janelas e as varandas