O ENSINAMENTO DE UM LOUCO
José António Gonçalves
saberei, saberemos todos, um dia
lá mais para a frente. mesmo que não
o queiramos, iremos saber. vamos aprender
a construir uma catedral, a erguer os muros
em que se guarda o silêncio, a iluminar
o ar com as sombras, a gritar em sussurros,
a confessar o vício pelo prazer de pecar.
iremos aprender. saberemos todos da vã
lonjura entre o céu e a terra, do paladar do vinho
e do pão transformado em corpo, do cheiro
das toalhas sobre os altares, dos poderes invisíveis
do habitante supremo do sacrário. operários,
iremos mais longe e provaremos do amargo
do suor antes da conclusão da obra. impacientes
por usufruir dos seus benefícios, na ausência
do voo para o desconhecido, no alcance
da salvação ou do penar nas agonias
nas masmorras do inomeado.
todos receberão instruções precisas sobre
o azeite e a cera, as diferenças entre os ricos
e os pobres, a importância da viagem de um camelo
e da inconsutilidade de uma agulha, dos mares
que se abrem ao meio e das prolongadas estadias
nos desertos sob um sol de efeitos abrasadores,
mas também sobre a comunicação entre os homens,
a saga dos seus libertadores, a alvura dos ideais,
a mesa dos rituais e dos lenhos, as aras de amores
insolúveis e do papel da água pura e da palavra
límpida na vitória sobre todos os tótens
e as suas misteriosas maldições.
saberemos todos. seremos construtores
de casas de pedra onde juízes condenam inocentes
e negociantes de madeiras fornecem o cafafalso
para os calar de uma vez. antes trouxeram os óleos,
as túnicas, as palmas e os palmitos, a farinha
e o barro, arranjaram o burro, pastores e até os reis
magos e fecharam na noite crucial todas as hospedarias
convocando o frio, a chuva e a estrela e o bafo da vaca
para aquecer o estábulo. saberemos todos. iremos aprender.
por ora sentemo-nos. é preciso repetir
tudo, decorar tudo. somos culpados. como a mãe,
o pai, como adão e eva. a vítima e o seu carrasco.
o que vive e o que está morto. enquanto esperamos,
enquando estamos acordados, vamos construir
o paraíso na terra. comecemos pela catedral. o lume
do conhecimento espalha-se pelas pradarias
e consome as cidades. enlouquece os sãos. mata
os insectos e os animais em correria. só os pássaros
escapam. e as crianças, imunes ao fogo e a dilemas.
algo nos diz que ainda há muito por fazer.
não experimentaremos os infernos. o bem irá vencer
o mal.. soltaremos as algemas.
comecemos.
José António Gonçalves
(inédito.06.10.04)