NADA ME APOQUENTA SENÃO A SOLIDÃO

José António Gonçalves

Nada me apoquenta senão a solidão.

Não tenho medo da morte, apenas do escuro

e dos pesadelos. Amo os cavalos na pradaria

e temo a proximidade questionante do seu olhar.

As badaladas das igrejas fazem-me arrepios,

mais do que os cemitérios ou os agentes funerários.

Os caixões não me incomodam, mas as carrinhas

dos féretros e o olor das avencas e das velas a arder

entram-me na alma, como o luto. Ferem-me a memória.

Nada me apoquenta senão a solidão.

Serei rabugento na idade própria. Insatisfeito

e indolente. Não me vou querer apartar

da minha biblioteca. O cansaço dos olhos

magoa-me mais do que as costas no inverno.

Não me falem de braille, de letrinhas em relevo.

Eu quero as palavras negras impressas

sobre o papel branco. Ler do princípio

até ao fim. Da apresentação ao índice. Devo

deixar isso bem claro. Leio por vício.

Proíbam-me de beber, de fumar, mas nunca

de ler. Só de pensar nisso fico doente,

sinto a terra movimentar-se às avessas.

Adormeço escrevendo, ouvindo os passos

dos filhos, retocando projectos, lembrando

o rosto de pessoas, imaginando netos,

um retrato, o falar de um esquecido parente,

como seriam as suas mãos, os seus traços.

Nada me apoquenta senão a solidão.

Se vejo um jarro de água fresca na cómoda,

abordo a toalha de linho, a bandeja, o raio

de luz que tudo atravessa e se desfaz em cores.

É quando acordo e vejo-me projectado

para o futuro. Sozinho, arrastando-me na sala

em busca de livros, vou imaginando o gosto

de uma cereja, o odor das tardes, a beleza das flores

que um dia andou por aqui. E medito no amor

e como é fundamental acordar cedo, ter um tecto

e alguém que esteja a dormir, ali, ao meu lado.

Nada me apoquenta senão a solidão.

Acho que já o escrevi. Vou voltar a ler

tudo desde as primeiras notas. E emendar

se for preciso. Não receio o trabalho de rever.

Quero que fique tudo correcto.

É por isso que repito, com o cântico dos anjos

a preencherem-me o dia, na voz dos passarinhos,

soltos por aí, entre a chuva fina e uma lufada de vento.

Nada me apoquenta senão a solidão.

Quando for velho, já sei, vou ser

muito triste. Um ancião cego e rabujento.

Cairei muitas vezes pelo chão, terei de virar

as páginas, de escolher os títulos, de cantar

ou de assobiar, se não puder, uma melodia

qualquer. Os médicos estarão preocupados

com os batimentos do meu coração.

Mas já vos aviso, para que todos saibam:

nada me apoquenta senão a solidão.

José António Gonçalves

(inédito, 13.12.04)

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JAG
Enviado por JAG em 13/09/2005
Código do texto: T50195