COMIGO TRAGO AS UVAS

José António Gonçalves

versos em memória de meu

avô, José António dos Reis

Comigo trago as uvas gastas

no mosto das vindimas antigas.

Elas cheiram ao vinho das castas

que andam nas letras das cantigas.

Não sei para que irão ainda servir;

penso mesmo na sua vã utilidade.

Porém deram o ouro, para o porvir,

e são o orgulho, no rosto da cidade.

Espelho-me nelas, no brilho que se foi

de um momento para outro, ao serem

usadas até ao tutano, onde mais dói,

sem que delas saibam, quando beberem

os vindouros o rubi-néctar, em pujança,

cumprindo-se assim a sua vera missão;

é essa a água que o amor, na esperança,

transforma em sangue, no bater do coração,

como se tudo quanto é, deveras, sagrado

afinal não tivesse, na vida, qualquer valor.

O que era uva é bagaço; o belo é jogado

fora; a Távola de Artur rende-se sem cor

nem bandeira, sem estímulo nem brilho,

caídas as últimas gotas, no alambique,

sem que lhe reste memória, a dum filho,

de algum prestígio que algures fique

para dizer às gerações futuras

como era uma maravilha, um espanto,

colher com as mãos as uvas maduras

e prová-las, frescas, na voz do meu canto.

JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES

(inédito.31.08.04)

http://members.netmadeira.com/jagoncalves/

JAG
Enviado por JAG em 31/08/2005
Código do texto: T46588