O HORTO CANTA NA PENUMBRA
José António Gonçalves
O horto canta na penumbra
da ilha e o abismo ali tão perto.
Há uma língua em chamas, a boca
da noite clamando, sem eco,
no sal do horizonte. Os barcos
ficam-se pela água. Mexem-se,
mas devagar. Parece que seguem
o brilho da lua, metalizado, em silêncio,
por entre as sombras persistentes
do cais. Os riachos parecem livros
enxutos, debaixo de um temporal;
cheios de sabedoria, mas calados,
extemporâneos. Ao longe ululam
uns fachos. Há companha. Os pescadores
acariciam a linha na lembrança da terra
firme. Uma âncora levanta um ruído
ensurdecedor ao procurar o fundo.
A mim nada apetece; não há mais
o que ler. A madrugada persiste na recusa
da chegada da manhã. E à minha frente
é sempre o mesmo mar, sempre
as mesmas ondas banhando o rosto
da mesma gente. Não havia rugas
da primeira vez, mas rezava-se nos campos
para chover. Brincava-se com as urtigas
e com lagartixas. Não se sabia se era
Janeiro, nem o sol lembrava Agosto.
Se ventava, cheirava a Inverno. Com flores
nascia a Primavera. Chorava-se, ria-se,
contava-se anedotas no escuro, o mar
parecia afastar-se, as casas cobriam-se
nas folhas das árvores, acendíamos
fogueiras, assobiávamos às gaivotas,
e desenhava-se o amor à tardinha;
ninguém se preocupava com o futuro
e o resto, no meio do silvado, eram cantigas.
José António Gonçalves
(inédito.01.10.04)
JAG
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