O DIA DA MINHA PARTIDA
José António Gonçalves
Arrumados os livros e as marcas
das páginas por ler é tempo de partir.
Abram-me a porta e desimpeçam-me
o caminho. Afastem-me essas mulheres
cheirando a aguardente, dêem-lhes um banho
de perfume de rosas e cubram-nas de poesia
maldita. Uns poemas muito usados,
com umas trezentas vezes a palavra amor
a divagar no algodão da saia. Vou levar comigo
o bordão dos passeios nas levadas e uma cesta
de vime com fruta verde, umas azedas e o chapéu
do pai, ainda impregnado de poeira e suor
das estradas de Orangestad. Tragam-me
os quadros com as fotografias dos avós
e uns pedaços de lenha para acender fogueiras
no frio da alma. A minha alma chora como se
cantasse e começo a pensar como sempre
desconheci o destino da minha partida.
Terei de rever toda a rota percorrida no tempo
e apontar para o sentido inverso. O sol
é inalcançável. Então perseguirei as sombras
desenhadas pelos anos no empedrado das ruas
ou nos silvados das serras. Ofereço-vos então
as noites, as minhas noites, para decorarem
as histórias do bruxedo da paróquia e olharem
as estrelas. Esquecer-me-ei propositadamente
de dizer adeus, serei profeta ou apóstolo
e seguirei pelas montanhas junto ao mar,
deixando as gentes amadas para trás cuidando
da casa. Comigo apenas uns cadernos
com rascunhos de Álvaro de Campos, uns versos infinitos de Leopardi e umas anotações
de Da Vinci retiradas da mala do sótão. Carregarei também algumas lágrimas, os ventos, as chuvas frescas dos invernos e umas flores secas. Misturarei tudo com uns postais
de Aruba e umas estampas da mãe
quando era nova. Agora tenho mesmo de ir. Chegou a hora. Se não for agora, sei-o
porque me conheço, jamais saberei como voltar.
E se vou, terei de regressar, vivo ou morto,
um dia qualquer.
Prometi-o a minha mulher, ontem, pela tardinha.
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
(inédito, 1.2.04)