LOUCA LUCIDEZ

Que eu perca a infância, perca o cascão da ferida lambida,

Perca a brincadeira de roda e a boneca mais querida

Que eu perca o dia já perdido na preguiça

e a madrugada mergulhada na pesquisa.

Que eu perca a janta enrolado na manta

e a longa espera da minha esfomeada pança.

Que eu perca a fome, perca o nome

o talher e o sobrenome

Que eu perca a carteira na cabeceira

perca meu mísero vintém

perca tudo que me convém

perca a expressão de horror, de pavor, torpor

perca a novela e até a hora do “Jô”

Que eu perca a hora, minuto, segundo e terceiro

também o quarto, a cozinha e o banheiro

Que eu perca o alvo, a mira

a régua, a métrica e a rima

Que eu perca o debate, a réplica e a tréplica

perca o vício e a verdade concreta

Que eu perca sua cueca samba-canção- da-américa

perca o passo, compasso da música, da dança,

Que eu perca a salsa, a valsa, o bolero e o baião

Baião de dois, arroz e feijão

Que eu perca a linha, a linha do tempo, a linha da vida impressa na mão

perca a linha da pauta, a aspas e o travessão

Que eu perca o trema, a vírgula, o sujeito e o predicado

perca a oração... a Oração de Santo Olegário

Que eu perca a viagem, a passagem, a bagagem

perca o riso raso, o sorriso largo, e o olhar profundo

Que eu me perca dançando quadrilha no meio do mundo.

Que eu perca o passo, passado, futuro e presente

perca a risada, e o sorriso amarelo contente

Que eu perca a largada já por mim antecipada na topada do percurso

perca a juventude, zelando por meu rebento, como um urso

Que eu perca a carona na ida e na volta,

perca a engrenagem, e a chave de roda,

que eu perca o sapato, e a rabiola

perca minha parafuseta da rebimboca

Que eu perca a visão, audição, que eu perca a ilusão

perca o pudor, a roupa, a voz e a vergonha

Que eu perca o rumo, o prumo e me torne pamonha

perca a vaidade e a idade

Que eu perca a ingenuidade, a malandragem

perca a seriedade e a mediocridade

Que eu perca a coragem do acordar do dia que já não mais existia

perca a vida já inserida na morte tão sentida.

Porém, contudo, entretanto, aliás, todavia...

que nunca me falte... por mais complexa que seja a vida

que nunca me falte

digo mais uma vez

Que nunca me falte

a minha mais perfeita e louca lucidez

Patricia Cattani

Patricia Cattani
Enviado por Patricia Cattani em 25/05/2012
Reeditado em 29/11/2019
Código do texto: T3687531
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