Vidro

O chão ainda molhado da chuva da tarde. Homens e mulheres passando com suas bundas grandes e pequenas. Ricos e pobres se misturam na rua, se olham e, as vezes, até se esbarram; se tocam como se fossem iguais. As mulheres de vida fácil começam a aparecer, parecem brotar das fendas, dos becos apertados quase impossível um rato. algumas extravagantes, outra discretas, mas a maioria com uma placa na testa escrito “puta”.

Estou no meu ponto, na mesma esquina suja de tijolos marrons. O mesmo cachorro rasgando sacos de lixo busca de algo que o alimente, geralmente plásticos com cheiro de comida que os fazem vomitar depois. As mesmas mulheres de vidros e com os vidros fechados no farol. A mesma correria de sempre. Meu cabelo está sujo e oleoso, meus pés já doem e minha cabeça está explodindo. Banhos de água gelada para dormir e acordar, todos os dias, todas as tardes, todas as noites. Toda a vida.

Anoitece e eu estou pronta, lavada e mascarada para mais uma noite. Me mantenho um pouco afastada das outras. Daqui tenho uma visão de duas ruas, a que eu fico e a paralela, o moço da lanchonete em frente lava os vidros e ouve música com o uniforme amarelado e o cabelo grande, parece feliz. Alguns carros passam devagar mas não param. Outros abaixam o vidro, nos olham e vão embora. A noite não está muito boa hoje. Uma companheira de profissão chega e me dá um oi forçado e encosta na parede. Eu percebo que ela canta alguma coisa, finjo que estou com a perna dormente e faço um movimento me aproximando um pouco mais, ela continua cantando com as mãos abertas espalmadas sobre as coxas. Percebo que, na verdade, ela reza. Ela para e me olha, vejo que ela esta chapada, ela ri e pergunta se tenho morfina, respondo que não e me afastado de novo.

Um gato pula de alguma janela para um amontoado de sacos pretos na calçada. Eu olho para o gato e vejo seus olhos de fogo, brilhando como um farol distante. Ele me olha com indiferença e sai cheio de si. Eu sinto inveja do gato, independente e solitário, cheio de vida e morte, cagando para o mundo. Na outra esquina vejo uma menina perto de um churrasquinho, olhando para a boca das pessoas que comem e riem sem notar sua presença. Ela olha sem piscar, se alimentando com a saliva e chorando com os olhos. Ajeito minha meia ¾ velha e lembro do dia que a comprei para usar para um namorado, aperto os olhos que já estão fechados na esperança de apagar melhor essa lembrança. Volto a olhar em volta e vejo um grupo de garotos passando do outro lado da rua, certamente chapados achando que não sentem medo. Olho para a parede onde estou encostada e vejo frases de amor escritas com giz e tinta vermelha, alguns corações e outros desenhos, partes da vida de alguém.

A rua que eu fico é uma das piores da zona, mas é também uma das poucas que o trabalho é livre, onde eu não preciso pagar taxa para ninguém. Me submeto a uma corrida de campeões, onde ninguém ganha, basta algum carro diminuir a velocidade que já tem três ou quatro ao redor, lambendo o pneu e a boca dos piores. Não tem muito o que se escolher, não tem muito o que se cobrar. Os homens que aparecem são os abutres do dia, mendigando atenção de esposas feias, trabalhando pra comprar carne de segunda e batendo em faces inocentes, e não tão inocentes assim. Eu ouço, eu finjo que ouço, eu olho, eu finjo que olho, eu acaricio, e finjo que gosto, eu beijo. A realidade do beijo é so em ficção, para se ganhar dinheiro beijo é tão banal quanto pegar na mão ou dar uma chupada. Na minha realidade, eu faço tudo. Na maioria das vezes eu so escolhida por ser uma das poucas que vão logo pra cima. Todos os dias vejo o mesmo anoitecer, as mesmas braçadas corriqueiras dos que permanecem aos meus olhos. Uma rua dividida, separa, excomungada de sujeira. Já me habituei aos olhos pidões da menina do cachorro quente, já sei que o restaurante do outro lado contrata garçom novo há cada 15 dias para não ter que pagar salário, já não sinto a fumaça dos cigarros ardendo em meu olho, todo os dias respondo “não” a companheira que me pergunta se tenho morfina. Todos os dias a mesma compra: camisinha e analgésico, e café quando lembro.

Não posso dizer que não conheço o mundo estando aqui, nessa esquina de tijolos marrons e merda de cachorro. Eu conheço o ritual deles, de cada um que não me olha por estarem anestesiados, assim como eu. Mas, também não posso dizer que lamento por eles, ou por mim. Sem lamento, sem drama, Sem tantos ais, somente as mesmas luzes piscando, os mesmos homens com dinheiro contado, a mesma comida comprada com a comida dada de hoje. Sinto muito mais por esses cachorros abandonados que passam por aqui, alguns voltam, alguns ficam, mas todos sem donos. Realmente sinto por esses cães, se pudessem, levaria-os comigo, subiriam ao meu quarto, deitariam na minha cama, permaneceriam inertes, aguardando eu terminar com outros animais, desta vez com donas, com amarras, com buracos para voltar. Mas nada faço, vejo-os passar, por vezes tocos seus pelo com meus dedos, ambos sujos da procura e da espera, depois, volto para o meu circulo. Quando a noite é boa, eu subo 5 vezes antes da madrugada, quando é ruim, subo apenas uma. Quando não se sente nada, o pior trabalho é esperar. É o mais dificil da noite, os homens, não são nada demais. Apenas sexo. Mal feito, rápido e insignificante. Nem prazer em dor. Nada.

Alguém me pergunta se to livre, eu digo que sim. Dou alguns passos, mostro uma escada e peço para ele me seguir> Como ele é? não sei, sua voz é embrulhada, provavelmente pela falta de dentes, mas seu rosto, é igual a noite toda de ontem e de amanhã. Seu rosto é homem, tanto faz.

Abro a porta e entro de cabeça baixa, ligo a luz já sabendo onde fica o interruptor, sem precisar apalpar a parede. Seguro a maçaneta da porta em silêncio e o homem passa me encarando, agora, feio e suado, já desabotoando o cinto. Ele ri com os dentes amarelados – “ até que pra uma vagabunda você é bem bonita” – Eu olho para o fundo do corredor com a luz latejante e fecho a porta.

Jana Canuto
Enviado por Jana Canuto em 03/05/2012
Reeditado em 03/05/2012
Código do texto: T3648347
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