ANTOLOGIA POÉTICA DE LUÍS DE CAMÕES

ENQUANTO QUIS FORTUNA QUE TIVESSE

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Esperança de algum contentamento,

O gosto de um suave pensamento

Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

Minha escritura a algum juízo isento,

Escureceu-me o engenho co'o tormento,

Para que seus enganos não disesse

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

A diversas vontades! Quando lerdes

Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

Tereis o entendimento de meus versos.

TOMOU-ME VOSSA VISTA SOBERANA

Tomou-me vossa vista soberana

Aonde tinha as armas mais à mão,

Por mostrar que quem busca defensão

Contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,

Deixou-me armar primeiro da razão;

Cuidei de me salvar, mas foi em vão,

Que contra o Céu não vale defensa humana.

Mas porém, se vos tinha prometido

O vosso alto destino esta vitória,

Ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que posto que estivesse apercebido,

Não levais de vencer-me grande glória;

Maior a levo eu de ser vencido.

AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

VERDES SÃO OS CAMPOS

Verdes são os campos,

De cor de limão:

Assim são os olhos

Do meu coração.

Campo, que te estendes

Com verdura bela;

Ovelhas, que nela

Vosso pasto tendes,

De ervas vos mantendes

Que traz o Verão,

E eu das lembranças

Do meu coração.

Gados que pasceis

Com contentamento,

Vosso mantimento

Não no entendereis;

Isso que comeis

Não são ervas, não:

São graças dos olhos

Do meu coração.

TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA

Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sómente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;

[E] o vivo e puro amor de que sou feito,

Como matéria simples busca a forma.

SE TANTA PENA TENHO MERECIDA

Se tanta pena tenho merecida

Em pago de sofrer tantas durezas,

Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,

Que aqui tendes u~a alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,

Desprezos, desfavores e asperezas,

Que mores sofrimentos e firmezas

Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vosso olhos quais serão?

Forçado é que tudo se lhe renda,

Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,

ƒÉ bem que, pois não acho defensão,

Com me meter nas lanças me defenda.

BUSQUE AMOR NOVAS ARTES, NOVO ENGENHO

Busque Amor novas artes, novo engenho

Pera matar-me, e novas esquivanças,

Que não pode tirar-me as esperanças,

Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças,

Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto

Onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como e dói não sei porquê.

QUEM PODE LIVRE SER, GENTIL SENHORA

Quem pode livre ser, gentil Senhora,

Vendo-vos com juízo sossegado,

Se o Menino que de olhos é privado

Nas meninas de vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,

Ali vive das gentes venerado;

Que o vivo lume e o rosto delicado

Imagens são nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas

Que fios crespos de ouro vão cercando,

Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verá, que as duvidosas

Almas estão no peito trespassando

Assim como um cristal o Sol trespassa.

O FOGO QUE NA BRANDA CERA ARDIA

O fogo que na branda cera ardia,

Vendo o rosto gentil que na alma vejo.

Se acendeu de outro fogo do desejo,

Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,

Da grande impaciência fez despejo,

E, remetendo com furor sobejo,

Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve

Apagar seus ardores e tormentos

Na vista do que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos

De vós, e queima o fogo aquela nave

Que queima corações e pensamentos.

TANTO DE MEU ESTADO ME ACHO INCERTO

Tanto de meu estado me acho incerto,

Que em vivo ardor tremendo estou de frio;

Sem causa, juntamente choro e rio;

O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;

Da alma um fogo me sai, da vista um rio;

Agora espero, agora desconfio,

Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;

Nu~a hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar u~a hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.

ALMA MINHA GENTIL QUE TE PARTISTE

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Algu~a cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

QUANDO DE MINHAS MÁGOAS A COMPRIDA

Quando de minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece,

Em sonhos aquela alma me aparece

Que pera mim foi sonho nesta vida.

Lá nu~a saudade, onde estendida

A vista pelo campo desfalece,

Corro pera ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: -- Não me fujais, sombra benina! --

Ela, os olhos em mim c'um brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser,

Torna a fugir-me; e eu gritando: -- Dina...

Antes que diga: -- mene, acordo, e vejo

Que nem um breve engano posso ter.

AH! MINHA DINAMENE! ASSIM DEIXASTE

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste

Quem não deixara nunca de querer-te!

Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te,

Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já pera sempre te apartaste

De quem tão longe estava de perder-te?

Puderam estas ondas defender-te

Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte

Me deixou, que tão cedo o negro manto

Em teus olhos deitado consentiste!

Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!

Que pena sentirei que valha tanto,

Que inda tenha por pouco viver triste?

ENDECHAS A BÁRBARA ESCRAVA

Aquela cativa

Que me tem cativo,

Porque nela vivo

Já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

Em suaves molhos,

Que pera meus olhos

Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,

Nem no céu estrelas

Me parecem belas

Como os meus amores.

Rosto singular,

Olhos sossegados,

Pretos e cansados,

Mas não de matar.

U~a graça viva,

Que neles lhe mora,

Pera ser senhora

De quem é cativa.

Pretos os cabelos,

Onde o povo vão

Perde opinião

Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,

Tão doce a figura,

Que a neve lhe jura

Que trocara a cor.

Leda mansidão,

Que o siso acompanha;

Bem parece estranha,

Mas bárbara não.

Presença serena

Que a tormenta amansa;

Nela, enfim, descansa

Toda a minha pena.

Esta é a cativa

Que me tem cativo;

E. pois nela vivo,

É força que viva.

DESCALÇA VAI PARA A FONTE

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,

O testo nas mãos de prata,

Cinta de fina escarlata,

Sainho de chamelote;

Traz a vasquinha de cote,

Mais branca que a neve pura.

Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,

Cabelos de ouro entrançado

Fita de cor de encarnado,

Tão linda que o mundo espanta.

Chove nela graça tanta,

Que dá graça à fermosura.

Vai fermosa e não segura.

PERDIGÃO PERDEU A PENA

Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha.

Perdigão que o pensamento

Subiu a um alto lugar,

Perde a pena do voar,

Ganha a pena do tormento.

Não tem no ar nem no vento

Asas com que se sustenha:

Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a u~a alta torre,

Mas achou-se desasado;

E, vendo-se depenado,

De puro penado morre.

Se a queixumes se socorre,

Lança no fogo mais lenha:

Não há mal que lhe não venha.

MUDAM-SE OS TEMPOS MUDAM-SE AS VONTADES

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.

NO MUNDO QUIS O TEMPO QUE SE ACHASSE

No mundo quis o Tempo que se achasse

O bem que por acerto ou sorte vinha;

E, por exprimentar que dita tinha,

Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse

Que nem ter esperanças me convinha,

Nunca nesta tão longa vida minha

Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,

Por ver se se mudava a sorte dura;

A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,

Já sei que deste meu buscar ventura

Achado tenho já que não a tenho.

QUANDO ME QUER ENGANAR

Quando me quer enganar

A minha bela perjura,

Pera mais me confirmar

O que quer certificar,

Pelos seus olhos mo jura.

Como meu contentamento

Todo se rege por eles,

Imagina o pensamento

Que se faz agravo a eles

Não crer tão grão juramento.

Porém, como em casos tais

Ando já visto e corrente,

Sem outros certos sinais,

Quanto me ela jura mais,

Tanto mais cuido que mente.

Então, vendo-lhe ofender

Uns tais olhos como aqueles,

Deixo-me antes tudo crer,

Só pela não constranger

A jurar falso por eles.

AMOR, QUE O GESTO HUMANO NA ALMA ESCREVE

Amor, que o gesto humano na alma escreve,

Vivas faíscas me mostrou um dia,

Donde um puro cristal se derretia

Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,

Por se certificar do que ali via,

Foi convertida em fonte, que fazia

A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade

Causa o primeiro efeito; o pensamento

Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento

De lágrimas de honesta piedade,

Lágrimas de imortal contentamento.

QUEM PRESUMIR, SENHOR, DE LOUVAR-VOS

Quem presumir, Senhora, de louvar-vos

Com humano saber, e não divino,

Ficará de tamanha culpa dino

Quamanha ficais sendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvor dar-vos,

Por mais que raro seja, e peregrino:

Que vossa fermosura eu imagino

Que Deus a ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes

Em posse pôr de prenda tão subida,

Como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;

Que, pois mercê tamanha me fizestes,

De mim será jamais nunca esquecida.

POSTO ME TEM FORTUNA EM TAL ESTADO

Posto me tem Fortuna em tal estado,

E tanto a seus pés me tem rendido!

Não tenho que perder já, de perdido;

Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem pera mim é acabado;

Daqui dou o viver já por vivido;

Que, aonde o mal é tão conhecido,

Também o viver mais será escusado,

Se me basta querer, a morte quero,

Que bem outra esperança não convém;

E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,

Já que o mal este só remédio tem,

Não me culpem em querer remédio tal.

AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar

No Mundo graves tormentos;

E pera mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só pera mim,

Anda o Mundo concertado.

EU CANTAREI DE AMOR TÃO DOCEMENTE

Eu cantarei de amor tão docemente,

Por uns termos em si tão concertados,

Que dois mil acidentes namorados

Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,

Pintando mil segredos delicados,

Brandas iras, suspiros magoados,

Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto

De vossa vista branda e rigorosa,

Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gesto

A composição alta e milagrosa

Aqui falta saber, engenho e arte.

QUE ME QUEREIS, PERPÉTUAS SAUDADES?

Que me quereis, perpétuas saudades?

Com que esperança inda me enganais?

Que o tempo que se vai não torna mais,

E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,

Porque estes tão ligeiros que passais,

Nem todos pera um gosto são iguais,

Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,

Que quase é outra cousa, porque os dias

Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias

Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,

Que do contentamento são espias.

SE AS PENAS COM QUE AMOR TÃO MAL ME TRATA

Se as penas com que Amor tão mal me trata

Permitirem que eu tanto viva delas,

Que veja escuro o lume das estrelas,

Em cuja vista o meu se acende e mata;

E se o tempo, que tudo desbarata

Secar as frescas rosas sem colhê-las,

Mostrando a linda cor das tranças belas

Mudada de ouro fino em bela prata;

Vereis, Senhora, então também mudado

O pensamento e aspereza vossa,

Quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,

Em tempo quando executar-se possa

Em vosso arrepender minha vingança.

SE ME VEM TANTA GLÓRIA SÓ DE OLHAR-TE

Se me vem tanta glória só de olhar-te,

ă pena desigual deixar de ver-te;

Se presumo com obras merecer-te,

Grão paga de um engano é desejar-te.

Se aspiro por quem és a celebrar-te,

Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;

Se mal me quero a mim por bem querer-te,

Que prémio querer posso mais que amar-te?

Porque um tão raro amor não me socorre?

Ó humano tesouro! Ó doce glória!

Ditoso quem à morte por ti corre!

Sempre escrita estarás nesta memória;

E esta alma viverá, pois por ti morre,

Porque ao fim da batalha é a vitória.

QUEM VÊ, SENHORA, CLARO E MANIFESTO

Quem vê, Senhora, claro e manifesto

O lindo ser de vossos olhos belos,

Se não perder de vista só em vê-los,

Já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;

Mas eu, por de vantagem merecê-los,

Dei mais a vida e alma por querê-los,

Donde já não me fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,

E tudo quanto tenho, tudo é vosso,

E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança

O dar-vos quanto tenho e quanto posso,

Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

O DIA EM QUE NASCI MOURA E PEREÇA

O dia em que nasci moura e pereça,

Não o queira jamais o tempo dar;

Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,

Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,

Mostre o Mundo sinais de se acabar,

Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,

A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,

As lágrimas no rosto, a cor perdida,

Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,

Que este dia deitou ao Mundo a vida

Mais desgraçada que jamais se viu!

JULGA-ME A GENTE TODA POR PERDIDO

Julga-me a gente toda por perdido,

Vendo-me tão entregue a meu cuidado,

Andar sempre dos homens apartado

E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,

E quase que sobre ele ando dobrado,

Tenho por baixo, rústico, enganado

Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,

Busque riquezas, honras a outra gente,

Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento

De trazer esculpido eternamente

Vosso fermoso gesto dentro na alma.

VENCIDO ESTÁ DE AMOR

Vencido está de amor Meu pensamento

O mais que pode ser Vencida a vida,

Sujeita a vos servir e Instituída,

Oferecendo tudo A vosso intento.

Contente deste bem, Louva o momento

Outra vez renovar Tão bem perdida;

A causa que me guia A tal ferida,

Ou hora em que se viu Seu perdimento.

Mil vezes desejando Está segura

Com essa pretensão Nesta empresa,

Tão estranha, tão doce, Honrosa e alta

Voltando só por vós Outra ventura,

Jurando não seguir Rara firmeza,

Sem ser no vosso amor Achado em falta.

SENHORA MINHA, SE DE PURA INVEJA

Senhora minha, se de pura inveja

Amor me tolhe a vista delicada,

A cor, de rosa e neve semeada,

E dos olhos a luz que o Sol deseja,

Não me pode tolher que vos não veja

Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,

Onde vos terei sempre debuxada,

Por mais cruel inimigo que me seja.

Nela vos vejo, e vejo que não nasce

Em belo e fresco prado deleitoso

Senão flor que dá cheiro a toda a serra.

Os lírios tendes nu~a e noutra face.

Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso

Quem os tiver, se há tanto bem na terra!

O CISNE, QUANDO SENTE SER CHEGADA

O cisne, quando sente ser chegada

A hora que põe termo a sua vida,

Música com voz alta e mui subida

Levanta pela praia inabitada.

Deseja ter a vida prolongada

Chorando do viver a despedida;

Com grande saudade da partida,

Celebra o triste fim desta jornada.

Assim, Senhora minha, quando via

O triste fim que davam meus amores,

Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave canto e harmonia

Descantei pelos vossos desfavores

La vuestra falsa fé y el amor mio.

SE PENA POR AMAR-VOS SE MERECE

Se pena por amar-vos se merece,

Quem dela livre está? ou quem isento?

Que alma, que razão, que entendimento

Em ver-vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida se oferece

Que ocupar-se em vós o pensamento?

Toda a pena cruel, todo o tormento

Em ver-vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando

Contínuo vos está, se vos ofende,

O mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim, Senhora, podeis ir começando,

Que claro se conhece e bem se entende

Amar-vos quanto devo e quanto posso.

SEMPRE A RAZÃO VENCIDA FOI DE AMOR

Sempre a Razão vencida foi de Amor;

Mas, porque assim o pedia o coração,

Quis Amor ser vencido da Razão.

Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte e nova dor!

Estranheza de grande admiração,

Que perde suas forças a afeição,

Por que não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,

Mas antes muito mais se esforça assim

Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,

Não creio que é Razão; mas há-de ser

Inclinação que eu tenho contra mim.

COITADO! QUE EM UM TEMPO CHORO E RIO

Coitado! que em um tempo choro e rio;

Espero e temo, quero e aborreço;

Juntamente me alegro e entristeço;

Du~a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;

E no que valho mais menos mereço.

Calo e dou vozes, falo e emudeço,

Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;

Queria poder mudar-me e estar quedo;

Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;

Queira desenredar-me e mais me enredo:

Tais os extremos em que triste vivo!

LEMBRANÇAS, QUE LEMBRAIS MEU BEM PASSADO

Lembranças, que lembrais meu bem passado,

Pera que sinta mais o mal presente,

Deixai-me, se quereis, viver contente,

Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado

Viver, como se vê, tão descontente,

Venha, se vier, o bem por acidente,

E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,

Perdendo-se as lembranças da memória,

Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida

A esperança traz de sua glória,

Se esta vida há-de ser sempre em tormento.

NUNCA EM AMOR DANOU O ATREVIMENTO

Nunca em amor danou o atrevimento;

Favorece a Fortuna a ousadia;

Porque sempre a encolhida cobardia

De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,

A Estrela nele encontra que lhe é guia;

Que o bem que encerra em si a fantasia,

São u~as ilusões que leva o vento.

Abrir-se devem passos à ventura;

Sem si próprio ninguém será ditoso;

Os princípios somente a Sorte os move.

Atrever-se é valor e não loucura;

Perderá por cobarde o venturoso

Que vos vê, se os temores não remove.

ERROS MEUS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE

Erros meus, má fortuna, amor ardente

Em minha perdição se conjuraram;

Os erros e a fortuna sobejaram,

Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

A grande dor das cousas que passaram,

Que as magoadas iras me ensinaram

A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;

Dei causa [a] que a Fortuna castigasse

As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse, que fartasse

Este meu duro Génio de vinganças!

QUAL TEM A BORBOLETA POR COSTUME

Qual tem a borboleta por costume,

Que, enlevada na luz da acesa vela,

Dando vai voltas mil, até que nela

Se queima agora, agore se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume

Desses olhos gentis, Aónia bela;

E abraso-me por mais que com cautela

Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,

O quanto se levanta o pensamento,

O como vou morrendo claramente;

Porém, não quer Amor que lhe resista,

Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,

Qual em glória maior, está contente.

O TEMPO ACABA O ANO, O MÊS E A HORA

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,

A força, a arte, a manha, a fortaleza;

O tempo acaba a fama e a riqueza,

O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora

Qualquer ingratidão, qualquer dureza;

Mas não pode acabar minha tristeza,

Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro

E o mais ledo prazer em choro triste;

O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro

O peito de diamante, onde consiste

A pena e o prazer desta esperança.

QUME DIZ QUE AMOR É FALSO OU ENGANOSO

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,

Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,

Sem falta lhe terá bem merecido

Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce, e é piedoso.

Quem o contrário diz não seja crido;

Seja por cego e apaixonado tido,

E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem;

Em mim mostrando todo o seu rigor,

Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de Amor;

Todos os seus males são um bem,

Que eu por todo outro bem não trocaria.

DE QUANTAS GRAÇAS TINHA, A NATUREZA

De quantas graças tinha, a Natureza

Fez um belo e riquíssimo tesouro,

E com rubis e rosas, neve e ouro,

Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza

Do belo rosto as rosas, por quem mouro;

No cabelo o valor do metal louro;

No peito a neve em que a alma tenho acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,

E fez deles um sol, onde se apura

A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura

Ela a apurar chegou quanto sabia

De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.

DITOSO SEJA AQUELE QUE SOMENTE

Ditoso seja aquele que somente

Se queixa de amorosas esquivanças;

Pois por elas não perde as esperanças

De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando absente,

Não sente mais que a pena das lembranças,

Porque, inda mais que se tema de mudanças,

Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,

Onde enganos, desprezos e isenção

Trazem o coração atormentado.

Mas triste de quem se sente magoado

De erros em que não pode haver perdão,

Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

GLOSA A MOTE ALHEIO

"Vejo-a na alma pintada,

Quando me pede o desejo

O natural que não vejo."

Se só no ver puramente

Me transformei no que vi,

De vista tão excelente

Mal poderei ser ausente,

Enquanto o não for de mi.

Porque a alma namorada

A traz tão bem debuxada

E a memória tanto voa,

Que, se a não vejo em pessoa,

"Vejo-a na alma pintada."

O desejo, que se estende

Ao que menos se concede,

Sobre vós pede e pretende,

Como o doente que pede

O que mais se lhe defende.

Eu, que em ausência vos vejo,

Tenho piedade e pejo

De me ver tão pobre estar,

Que então não tenho que dar,

"Quando me pede o desejo."

Como àquele que cegou

É cousa vista e notória,

Que a Natureza ordenou

Que se lhe dobre em memória

O que em vista lhe faltou,

Assim a mim, que não rejo

Os olhos ao que desejo,

Na memória e na firmeza

Me concede a Natureza

"O natural que não vejo."

ONDE ACHAREI LUGAR TÃO APARTADO

Onde acharei lugar tão apartado

E tão isento em tudo da ventura,

Que, não digo eu de humana criatura,

Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,

Ou selva solitária, triste e escura,

Sem fonte clara ou plácida verdura,

Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,

Em vida morto, sepultado em vida,

Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha pena é sem medida,

Ali triste serei em dias ledos

E dias tristes me farão contente.

LUÍS DE CAMÕES
Enviado por PROF MOREYRA em 10/10/2011
Reeditado em 18/10/2011
Código do texto: T3268775
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