O GUARDADOR DE REBANHOS
O GUARDADOR DE REBANHOS
I (excertos)
Fernando Pessoa
...Saúdo todos os que me lerem,
tirando-lhes o chapéu largo
quando me vêem à minha porta
mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
e chuva, quando a chuva é precisa
e que as suas casas tenham
ao pé duma janela aberta
uma cadeira predileta
onde se sentem, lendo os meus versos
e ao lerem os meus versos pensem
que sou qualquer cousa natural---
por exemplo, a árvore antiga
à sombra da qual quando crianças
se sentavam com um baque, cansados de brincar
e limpavam o suor da testa quente
com a manga do bibe riscado
II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
olhando para a direita e para a esquerda,
e de vez em quando olhando para trás...
e o que vejo a cada momento
é aquilo que nunca antes eu tinha visto,
e eu sei dar por isso muito bem...
sei ter o pasmo essencial
que tem uma criança, se ao nascer
reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
para a eterna novidade do Mundo
Creio no mundo como num malmequer.
Porque o vejo. Mas não penso nele
porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos
Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas, porque a amo e, amo-a por isso,
porque quem ama nunca sabe o que ama
nem sabe por que ama, nem o que é amar.
Amar é a eterna inocência
e a única inocência não pensar.
8.3.1914
PESSOA, Fernando. O Eu Profundo e os Outros Eus. Editora Nova Fronteira: RJ, 1980, pgs.135/7
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