Do Livro do Desassossego

Do Livro do Desassossego

1.

"O coração, se pudesse pensar, pararia."

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do

abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma

prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis,

porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao

que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao

que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até

mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e

canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que

me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro

dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se

não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."

6.

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como

sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a

substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de

milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança

sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo

mais porque vivo maior."

* * *

7.

"Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os

patrões abstractos do mundo."

"Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo

tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um

pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar -

ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o

dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das

estrelas."

* * *

Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

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Imprimatur Revista Literária
Enviado por Imprimatur Revista Literária em 22/12/2010
Código do texto: T2685932