O CICLO DAS ERAS
José António Gonçalves
como estar quieto no ciclo das eras
e deixar-se ir como folhas soltas nos rios
sem temer as máscaras de feno sobre a terra
nem os espantalhos negros e azuis e as vozes
nascendo nos abismos e explodindo
no mistério dos estios
como ignorar a casa e as suas ruínas
o céu que lhe entra pelo telhado e faz ninho
nos nós da madeira e no coração dos quartos
a chuva que a comprime no mar de todos os frios
o aperto dos abraços firmes verdes das heras
aspirando pela liberdade
das primaveras
e esquecer os caudais de águas revoltas
o sol que tarda a nascer a cantar a sua combustão
invadindo as brechas da floresta o calafrio da noite
o sombreado das pontes plantadas no horizonte
a carne dos caminheiros perdidos
na ânsia de saciar a sede
em qualquer fonte
como estar quieto no ciclo das eras
se a erva invade o terreiro onde o homem passa
e abana o muro onde se apoia no final do dia
sem que revele onde esconde a vela a luz
prometendo esperança para o amanhã
e adormeça logo ali de seguida
como se um fogo lhe consumisse
a vida
é urgente saber como estar
quieto
no ciclo das eras
é preciso libertar os pássaros
e vê-los voar sem esperar
pelo seu regresso
apurando a sua rota.
talvez nos tragam
sem darmos por isso
uma provável resposta
num sopro de quimeras.
José António Gonçalves
(07.07.04)