PARA TODOS OS CÃES QUE NOS SEGUEM NA RUA E QUE NÓS NÃO PODEMOS DAR ABRIGO...

HISTÓRIA DE UM CÃO

Luis Guimarães Filho

Eu tinha um cão, chamava-se Veludo

Magro, asqueroso, revoltante, imundo

Para dizer numa palavra tudo

Era o mais feio cão que houve no mundo

Recebi-o das mãos de um camarada,

Na hora da partida, o cão gemendo,

Não me queria acompanhar por nada

Enfim mal grado seu o vim trazendo

Tratá-o bem. Verás como rafeiro

Te indicarás aos mais sutis perigos

Adeus. E que este amigo verdadeiro

Te console no mundo ermo de amigos

Veludo à custo habituou-se à vida

Que o destino de novo lhe escolhera

Sua meigosa pálpebra sentida

Chora o antigo dono que perdera

Nas longas noites de luar brilhante

Febril, cunvulso, trêmulo, agitado

A sua cauda caminhava errante

A luz da lua, tristemente uivando

Toussenel, Figuier e a lista imensa

Dos modernos zoológicos doutores

Dizem que o cão é um animal que pensa

Talvez tenham razão estes senhores

Lembro-me ainda, certo dia

Me vi livre daquele companheiro

Para nada Veludo me servia

Entreguei-o a mulher de um carvoeiro

E respirei. Já posso, dizia eu

Viver neste bom mundo

Sem ter que dar diariamente um osso

A um bicho vil, a um feio cão imundo

Gosto dos animais, porém, prefiro

A essa baixa raça aduladora

Um alazão inglês de sela ou tiro

Ou um gata branca e cismadora

Mau respirei, porém quando dormia

E a negra noite amortalhava tudo

Senti que a minha porta alguém batia

Fui ver quem é, abri, era Veludo

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés

Farejou toda a casa satisfeito

E, de cansado, foi rolar dormindo

Como uma pedra junto ao meu leito

Praguejei furioso. Era execrável

Suportar esse hospede importuno

Que me seguea como um miserável

Ladrão, ou como um pérfido gatuno

E resolvi-me enfim. Certo é custoso

Dizê-lo em voz alta e confessá-lo:

Para livrar-me desse cão leproso

Havia um meio só, era matá-lo

Zunia a aza fênebre dos ventos

Só longe o mar na solidão gemendo

Arrebentava em uivos e lamentos

De instante a instante ia o tufão crescendo

Chamei Veludo, ele segui-me excitante

A fremente borraica me arrancava

Dos frios ombros o revolto manto

E a chuva meus cabelos fustigava

Despertei um barqueiro. Contra o vento

Contra de oriolas coléricas vagamos,

Dava-me forças o torvo pensamento

Peguei no remo e confusos remamos

Veludo à prôa olhava-me choroso

Como um cordeiro no final momento

Embora era fatal, era forçoso

Livrar-me, enfim, desse animal nojento

No longo mar, ergui-o nos braços

E arremessei-o às ondas, de repente,

Ele morreu, gemendo, os membros lassos

Lutando contra a morte era pungente!

Voltei a terra-lhas ao despir dos ombros meus o manto

Notei, ó grande dor! Haver perdido

Uma relíquia que eu prezava tanto

Era uma corrente de ouro que eu tinha muito

Contra o meu coração constantemente

No eterno abismo que devora tudo

E foi Veludo, foi esse cão imundo

A causa do meu mau. Ah! Se Veludo

Duas vidas tivera, duas vidas

Eu arrancaria àquela besta morta

E aquelas vis entranhas corrompidas

Nisto, senti uivos à minha porta

Corri, abri, era Veludo. Arfava

Estendeu-se aos meus pés e docemente

Deixou cair da boca que espumava

A medalha suspensa da corrente

Fôra crível, ó Deus! Ajoelhado

Junto ao cão, estupefado, absorto

Palpei-lhe o corpo, estava enregelado

Sacudi-o, chamei-o, estava morto.

PS: "...O mais altruísta dos amigos que um homem pode ter neste mundo egoísta, aquele que nunca o abandona e nunca mostra ingratidão ou deslealdade, é o cão."

MIRAH
Enviado por MIRAH em 26/04/2010
Reeditado em 26/04/2010
Código do texto: T2221571