SELEÇÃO POÉTICA - 2

12. Correnteza.

Queria entender o amor,

Dissecar suas entranhas, suas manhas,

Virar do avesso seus véus,

Descobrir quem faz a sua cor,

Conhecer quem manda nos seus céus.

Queria entender seus tantos passos,

Saber suas várias línguas e dialetos,

Traduzir com clareza suas bandeiras e medalhas,

Ser capaz de sentir mesmo quando chega perto.

Queria ouvir seus ecos e batidas do coração,

Poder tocar na sua face sem ele sentir,

Entender porque diz às vezes que não devemos ir,

Entender porque mostra sempre que nos perdemos a razão.

Queria deixar de ser presa fácil dessas garras,

Deixar de ser uma criança que não conhece o sim e o não,

Queria deixar de viver à mercê das suas amarras,

Queria deixar de ter tantas cicatrizes marcando meu chão.

Mas não adianta, é perda de tempo querer segurar o mar,

É perda de tempo querer contar as frutas desse pomar,

O amor vai sempre seguir o seu rumo confundindo a nossa certeza.

Pra gente acabar sempre sendo levando nessa louca correnteza.

Nessa louca correnteza.

8MAR08

13. Embranquecendo.

É gostoso enrugar as nossas crianças,

Ver cada pelo renascendo flocos de algodão,

Ver a vida recebendo o poente de braços abertos,

Ver as paisagens do rosto virando só lembranças,

Só lembranças.

É gostoso saber que valeu a pena cada chão pisado,

Que fomos capazes de encantar suores, de cruzar novos passos,

Que as horas não foram inimigas, nem fardos,

Que valeu a pena ter alinhavado tantos laços.

É gostoso entender que olhar pra trás não dói a nuca,

É gostoso perceber que o espelho agora sorri pra gente,

E que nos olha com respeito, carinho e orgulho,

E que não somos refugo e nem qualquer entulho.

Se cada dia ficamos mais outonos, coisas de Deus,

O tempo não discute suas leis nem junta as suas peças,

Esse vento não erra o pouso, o vigor agora tem outra cor,

Tem outro sentido, outro endereço, outra melodia para nos fazer dormir,

Que a gente vai escutando baixinho sem pressa,

Mesmo sem entender se todos os sons são meus.

São meus.

Até que vai chegar aquele dia, o belo dia,

Em que finalmente colocamos uma rédea no tempo,

Quando não precisamos mais ir para lugar nenhum,

Nem temos porque abrir os olhos ou fazer uma nova alegoria

Então finalmente vamos dormir sem sonhar sonho algum,

Sem sonhar sonho algum.

8MAR08

14. Asas da liberdade.

Vou pra onde quero sem pedir licença,

Faço o que quiser sem dar satisfação,

Meu reino é tudo o que você pensa,

Liberdade é coisa que nasceu do meu coração.

Se tenho fome, comida pego onde der,

Se tenho sono paro em qualquer canto e espero,

Se tenho pressa os ventos me ajudam a correr,

Se tenho frio o tempo traz pra mim o calor que quero.

Muitas vezes fico sem saber pra onde ir,

Então olho pras estrelas e o céu abre pra mim,

É como se o mundo todo decidisse me traduzir,

E então fico feliz de um jeito que não tem fim.

A solidão às vezes vem de mansinho e fica,

Começa a atormentar meu peito sem parar,

Dá vontade de morrer, dá vontade de tudo desligar,

Mas isso passa logo, esqueço rápido e tudo volta ao seu lugar.

O mundo é minha casa, o sol é minha asa, meu ovo,

As cores mudam pra mim a cada piscar de olhos,

Os sons ficam outros a cada segundo novo,

Por isso adoro viver e sou pra sempre muito feliz,

Muito feliz.

Um dia tudo isso vai me cansar, ai se vai,

Então vou arrematar meus dias voando pro lugar de onde vim,

E lá certamente não terei medo quando a noite cai,

E assim finalmente vou descansar enfim.

Assim.

9MAR08

15. Meu moleque.

Que saudade desse moleque

Que vive dentro de mim,

Não pensando no que sente ou diz.

Que saudade desse garoto,

Que vive dentro de quem

Olhando pro mundo sem culpa,

Fazendo as coisas do seu jeito,

Sem dividir isso com ninguém.

Saudade desse moleque, mesmo,

Que vive no meu endereço e nem conheço

Que sabe tudo de mim, até o meu preço

Que tem tudo de mim desde o berço.

Que sabe tudo de mim, até o meu preço

Que tem tudo de mim desde o berço.

Saudade desse cara que vai embora na manhã que quiser,

Que vai embora quando a vontade vier.

Mas um dia ele volta pra mim, volta sim,

Então sumimos no mundo,

Num gole, num colo quente qualquer.

Até nunca mais.

Até nunca mais.

10MAR08

16. Vôo rasante.

Gosto de te ver assim, gostosa, toda saborosa,

Atiçando meus suores do jeito que quer,

Oh mulher.

Gosto quando você vira rameira, vira vulgar,

Soltando besteira sem parar, sem parar,

Gemendo feito louca, esquecendo quem você é,

Caindo em vôo rasante até onde der,

Até onde der.

Gosto de fazer teu coração desembestar,

Você me apertando, entrando mais e mais, mais e mais,

Deixando meu fogo molhar essa gruta-aranha,

Deixando minha língua sugar todo esse cais.

Oh mulher.

Gosto de passar a mão em tudo que agora é meu,

Sentindo nas pontas dos dedos teus pelos, teus segredos,

Pra quando o gozo chegar pular em vôo cego,

Nesse mergulho sem dores nem medos.

E assim vamos entrando no outro sem pedir licença,

Vivendo alegorias untados nesse carnaval,

Descobrindo que é gostoso se amar feito bicho,

Descobrindo que o prazer é gostoso e ponto final.

Oh Mulher.

11MAR08

17. Pode crer.

De repente sinto uma força sem igual,

capaz de retorcer mundos, revirar o certo,

uma força descomunal,

algo que até dá medo de pensar,

dá medo até de chegar perto.

Uma energia brota de dentro, de fora,

envolve tudo e todos como toda calma

começa mansinha e fica do tamanho da alma,

começa filhinha e nunca mais embora.

Tem gente que vai dizer que isso não existe,

que é coisa que gente inventa toda hora,

que é coisa que sem importância, desiste,

que é coisa que não serve pra nada, cai fora!

Mas não é nada disso, meu irmão,

de fato virei gigante, posso esmigalhar tudo na mão,

sou capaz de atracar minhas carcaças em qualquer cais,

sou capaz de mandar tudo que não importa pra nunca mais.

Essa força brota dos poros feito infinitos vulcões,

sai de dentro de mim com a força dos embriões,

escorre pelos meus suores com a fúria da saudade,

arrebata meus passos na mais plena felicidade.

Nem sei o nome que isso tem, nem quero saber,

O que importa é que existe, e isso basta,

uma praga que cada vez mais se alastra,

uma luz que comprova que querer só pode ser poder,

pode crer.

19MAR08

18. Mágoas.

Queria falar da mágoa, se puder,

não aquela de todo dia, não

aquela que está longe da nossa razão,

quietinha, suave, dormente,

com todo jeito que nada quer.

De tão pequena nem damos bola,

fica jogada num canto qualquer,

pra gente fingir que não vê,

não sente, e nem crê.

Num belo dia ela se mexe,

a gente continua achando que é porcaria,

coisa de conto de fada, fantasia,

deixa pra lá, esquece, deixa pra outro dia.

Ela que passou toda a nossa vida se armando,

cavocando nossos furos, becos e cantos escuros,

sabendo onde erramos, onde roemos a corda,

onde desafinamos, onde blefamos.

Sabe como ninguém onde pecamos,

conhece nossos truques, nossos estoques,

conhece nossas ilhas e armadilhas,

as bruxas que nos fazem em pedaços.

E assim,

pra onde ela for, vamos trás,

vira o nosso fogo, o nosso gás,

alegria que um dia orvalhou, jamais.

E vai nos levando pra outra nascente,

o tempo não cessa de mandar seus guias,

os fios brancos vão povoando nossos dias,

as rugas vão carpindo a nossa pele,

e o fim fica cada vez mais rente, mais rente.

E aquele mágoa, que não valia um tostão,

vira o jogo que faz a terra tremer,

vira a fera que destrava o cabresto do furacão,

vira a espera que faz da vida a gente esquecer.

21MAR08

19. Dois vira um

Que sentimento que faz

dois virar um, me diz, vai, me diz

talvez seja a vontade de tocar,

mas isso passa, feito caça,

não cria limo, nem fumaça.

Que sentimento que faz,

dois virar um, vai, me diz,

talvez seja o desejo de semear,

mas isso logo vai embora,

e a vontade que era tanta,

se esmigalha até a hora da janta,

e a gente até esquece que um dia existiu,

viu?

Que sentimento que faz,

dois virar um, vai, me diz,

talvez seja o medo do escuro,

dar um grito sem ouvir o eco,

mas passa logo, nem deixa resto.

Que sentimento que faz,

dois virar um, vai, me diz,

talvez seja o tremor do embranquecer,

já que o tempo é senhor, tem poder,

mas isso não dura nada,

os dias correm mesmo em águas paradas.

O que faz mesmo, mesmo,

dois virar um é um mandamento,

que não está entre os 10, mas é ungüento,

a gente até despreza, parece cão sarnento,

o que faz dois virar um é uma coisa só

é o compartilhamento.

24MAR08

20. Novos ninhos.

Estranho esse negócio de filho

criatura que sai da gente num gozo

vai tomando seu rumo sem pressa

e de repente tem seu próprio brilho.

São nossos e do infinito,

na verdade não são de ninguém

não têm dono, nem tem cabresto,

e nunca saberemos pra que vem.

Tenho dois desses, ainda bem,

moleque e menina, meus queridos,

meus maiores tesouros paridos,

uma alegria que vai sempre além,

bem além.

Gosto de ver tomando forma,

virando homem, renascendo mulher,

mudando seu corpo, sua alma

ficando do jeito que a vida quer.

que a vida puder.

Um dia vocês vão cair no mundo, feito fadas,

começar a armar seu ninho, com quem?

e nós, felizes, vamos acenar de mãos dadas

sabendo que cumprimos a nossa sina, amém.

25MAR08

21. Larga disso.

Você precisa aprender a me amar,

entender como bebo na fonte,

descobrir como gosto de mergulhar,

descobrir o meu atalho, minha ponte.

Já avisei, menina, larga disso,

já cantei essa bola trilhão de vezes,

já falei que você pode dançar, sabia,

já falei que tudo pode melar um dia.

Chega dessa mania de só ver o que quer,

não enxergar o que está na ponta do nariz,

parar de só olhar pra dentro do seu peito,

Vendo as coisas só do seu jeito.

Assim a brincadeira fica sem graça, sem raça, cheia de traça,

o caminho a dois fica uma droga,

não dá vontade de dormir junto, nem sentir seu cheiro,

e nem escutar os passos do seu coração.

Já avisei, menina, larga disso,

já cantei essa bola trilhão de vezes,

já falei que você pode dançar, sabia,

já falei que tudo pode melar um dia.

Assim vou cada vez mais longe, viro monge,

faço só o que devo, esqueço o tempero gostoso que conheço bem,

assim a fonte que nos une vira pó,

deveríamos ser apenas um, mas viramos mais de cem.

Já avisei, menina, pra largar disso,

já cantei essa bola trilhão de vezes,

já falei que você pode dançar, sabia,

já falei que tudo pode melar um dia.

As coisas são assim, não adianta chiar,

as regras do jogo são claras, juro,

não queria fosse assim, no duro,

queria que tudo fosse gostoso, sem parar.

Já avisei, menina, pra largar disso,

já cantei essa bola trilhão de vezes,

já falei que você pode dançar, sabia,

já falei que tudo pode melar um dia.

Um dia...

26MAR08

22. Ombro amigo.

Um dia você se mandou de mim,

pegou suas malas, falas e foi sem fim,

nem lembro mais a última vez que te vi,

não teve tempo pra dizer adeus,

foi embora de um jeito que nunca entendi.

Aquele dia foi fogo, triste partida,

mas como tudo na vida, vira ferida,

o tempo é senhor, tudo cicatriza,

a gente até esquece do que mais precisa.

Você foi um grande amigo, sabia,

não tinha porta fechada, nem mal dia,

o teu ombro estava sempre pronto pra mim,

e eu mal sabia que tudo acabaria enfim.

Quem te levou não pediu licença,

nem quis saber se estava na minha hora, que pena,

mas essas coisas não são como a gente pensa,

e mostram como a nossa alma é pequena.

Hoje cada vez tenho menos saudade,

cada dia você fica mais longe, mais longe,

essa é a lei da vida, que posso fazer?

Não adianta lamentar, o caminho faz esquecer.

Mas hoje tudo isso acordou diferente,

aquele cara que estava tão longe, está do lado,

trouxe seu cheiro, seu brilho, seu abraço amado,

trouxe seu colo, seu carinho, seu corpo presente,

seu corpo presente.

Meus olhos ficaram chuvosos, como dói

nem sei esse sentimento pra onde vai, como corrói,

mas um dia os nossos caminhos vão de novo se achar,

obrigado por tudo que fez por mim, meu pai.

Dedicada a meu pai, Geraldo Silbiger, uma grande saudade, desde 2002, desde sempre.