Veio-lhe o sentimento como algo novo, como se pela primeira vez a caridade lhe acontecesse.
 
Sentia-se feliz, os anos lhe andavam ordenados, os acontecimentos também. Mal começara a vida – para lembrar dito popular – e muito já fizera e plantara.
 
De menino a homem fora um interlúdio perene, travessuras risíveis, culpas de antemão perdoadas, ousadias pré-concebidas.
 
A esposa não entrou-lhe pela vida, apenas veio ocupar seu espaço desde sempre preparado e dividir-lhe os filhos até derradeiramente encontrarem-se sós na velhice.
 
Os bens foram conquistados como compensação a sua adaptação social e produtiva, eram-lhe, portanto, devidos. 
 
Nada disto lhe sabia o cotidiano, se hoje estava refletivo, era a época, indução daquilo que chamam espírito natalino.
 
Tudo preparado para a grande noite em que celebrariam o nascimento do redentor, pouco importando que a data não fosse correta, menos ainda os tais acontecimentos, e que claramente haviam forjado a condição. 
 
Pairava sobre o idiotizado senso comum que este era o dia de se renovarem esperanças, votos de felicidades, de se esquecerem as mágoas e os constrangimentos. Nesta noite inimigos se enlaçariam, casais se amariam, fratricidas se arrependeriam, orgulhos se romperiam.
 
Já sabiam os helenos dos benefícios da mesa farta e do bom vinho, assim foram sacrificados alguns animais, importadas algumas frutas – também o costume é estrangeiro, abasteceram o bar e, mais do que isto, para provar o bom intento da conciliação, e, principalmente dar valor à moeda – para ter reconhecido seu valor – foram comprados e embrulhados e esterilizados presentes para todos os presentes.
 
Aos ausentes não atingia-os o tal espírito, e fora esta justamente a causa da repentina comoção de nosso herói.
 
Ao sair de uma loja onde fora comprar um esquecido ingrediente do imprescindível salpicão, deparara-se com aquela senhora, em nada semelhante à mamãe Noel, aproveitando-se da curvatura que decerto muitas agruras lhe impingiram, enfiava-se dentro do latão de lixo da verduraria a recolher os restos que comporiam sua santa ceia.
 
A compaixão inundou-se-lhe, tanta felicidade e contentamento dentro de si, e ali, despudoradamente descortinada a seus sentidos tão infame e privada imagem.
 
Seu gesto fora impulsivo, logo ele, tão equilibrado, tirara da carteira uma nota – não tão impulsivo que não guardasse a onça – de dez reais, que certamente seria um tesouro à mendicante.
 
A expressão desta foi antes de incredulidade, o que se lhe passou depois pelo rosto nosso bom burguês, por falta de conhecimento das emoções verdadeiras, jamais poderá dimensionar, apenas pressentiu algo como extrema alegria.
 
Foi-se para o carro, último modelo, presente que todo ano dava a si mesmo, confortado em saber que por uma noite haveria festa num casebre qualquer, e que seu gesto renderia-lhe valiosos pontos no livro do bem e do mal.
 
Pisou mais forte no acelerador, ansioso que estava de contar a todos sua magnânima atitude. Ouviria, com certeza, que isto é o espírito do natal, o renascimento de Cristo no coração dos homens, onde viveria por mais um ano, e depois se renovaria “ad eternum”.
 
Aqui termina a pequena aventura natalina de nosso burguês, mas pensemos nós ainda, já que ele não mais o fará, que seu efêmero gesto não evitará a fome que se propagará nos vindouros dias daquela senhora.
 
Para que isto aconteça, o fim da fome, da miséria, da indigna condição, é preciso que neste tempo globalizado Cristo renasça antes na consciência dos homens que só no coração.
 
Quando compreendermos que ele nada mais foi que humano (ou fruto da mente humanitária humana), e derrotarmos sua fraqueza no limiar do novo homem, o além-homem, talvez então Cristo possa também morrer em paz.