DECOMPOSIÇÃO
Eu sou ninguém...
Sou presença dispensável, como ausência, descartável
Sou o sorriso amarelo que não contagia
Sou exemplos não seguidos, como templos demolidos
sou palavra sem conforto, minh'alma é vazia
Sou dor que não faz sentido, um nobre desconhecido
Sou um ser amordaçado pela agonia
Sou um ponto no espaço, o sucesso do fracasso
Sou o grito de revolta, voz que silencia
Eu sou ninguém...
Sou alguém que ninguém busca, sou a luz que não ofusca
Sou a nuvem carrancuda que esconde o dia
Sou o frio do inverno, sou o fogo do inferno
Sou loucura manifesta pela histeria
Sou um corpo combalido, um tumor apodrecido
Sou a carne corroida pela alergia
Sou doença incurável, um fantasma abominável
Sou a morte traduzida em melancolia
Eu sou ninguém...
Sou a culpa do pecado, um modelo ultrapassado
Sou quem fez alguma coisa que ninguém faria
Sou a dose de veneno, sou o gigante pequeno
Sou o frasco de perfume quando esvazia
Sou a cobrança do ágio, portador do mal presságio
Sou um monge excluido de uma confraria
Sou a força do carrasco, o motivo do fiasco
Sou o vírus que se espalha numa epidemia
Eu sou ninguém...
Sou a fonte do mau cheiro, soldado prisioneiro
Sou a mão do poderoso, sou a tirania
Sou a ave de rapina, sou a arma da chacina
Sou bisturi que disseca a cidadania
Sou o carcoma do seio, o pobre patinho feio
Sou a crise de garganta numa noite fria
Sou a gota que transborda, a doçura que engorda
sou o crime organizado da periferia
Eu sou ninguém...
Sou verme de sepultura, o limiar da loucura
Sou a crença maculada pela heresia
Sou modelo de vergonha, pesadelo de quem sonha
Sou o som descompassado da disritmia
Sou uma mera aparência, conteudo sem essência
Sou a mente estuprada pela hipocrisia
Sou a blasfêmia na prece, sou a vida que fenece
Sou ninguém, pois nada importa a sabedoria