QUANDO FUI FELIZ NESSA VIDA

Encontrei Maria sem fôlego, sem endereço, sem cabresto.

Estava sentada na calçada, alma maltratada pelas tantas rugas chicoteadas pela vida.

Senti de longe o seu cheio de ciranda perdida, de faca que perdeu o fio, de laço que perdeu a ginga, de mundana que perdeu o único michê da noite.

Ofereci um trago, uma conversa vadia, ofereci para trocarmos o que levávamos nos bolsos da calça, o que tínhamos de encardido nas asas da razão.

Mas ela não conseguia, ou não queria, escutar.

Maria não parecia a idade que levava nas costas,

e nem, tampouco, mantinha em sentinela aquela voz que tanto quisera ouvir um dia, que tanto quisera afagar um dia.

Percebi que estava com as unhas roídas, que perdera alguns dentes, que os cabelos de outrora tinham arredado pé dali. Mas ainda era uma bela gazela, ancas bem aprumadas, dorso torneado com delicadeza de um mestre.

Percebi que a sua pele tinha agora novas veias, bem distantes daquelas em que cravei minhas ferragens arlequim.

Maria não tinha me visto até então, que pena, que sorte.

A minha vontade naquela hora era pegá-la de novo nos braços e, juntos, irmos buscar aquele seio em que nunca tivemos coragem para morder e sugar toda sua carne.

A minha vontade era esquecer todas minhas regras e medos, todos os meus ranços de cangaceiro redimido, todas as minhas farsas de cigano solitário, de andarilho capenga e vulgar.

Mas não, Maria merecia muito mais do que esse hálito sedento, do que esse verso de cordel maltrapilho e bandido em mim mesmo.

Merecia muito mais do que inseminar as suas vértebras tortas com a ponta da minha língua, merecia muito mais do que rasgar sua fétida indiferença para tentar roubar quaisquer filetes de luz.

Então, por certo, fiz o que tinha que ser feito.

Segurei com as duas mãos aquele rosto tardio e arredio, aquele rosto que um dia foi meu espelho e novelo de vida, e dei-lhe um beijo. Longo e suave beijo.

Maria então abriu seus olhos e sorriu pra mim.

E esse foi o único momento da minha vida em que fui realmente feliz.