A DOR QUE DÓI MAIS
Dor, que dor que dói mais?
Será que é quando a tarde cai e estamos com a outra fronha sem amassar,
será que é quando a verdade vai e volta e não volta,
será que é quando o chão vira água, vira traça,
será que é quando a mão que afaga nos afoga, nos atola?
Dor, que dor que dói mais?
Será que é quando a única voz amiga só desafina,
será que é quando paixão fica rala, vira cortina,
será que é quando o tempo não pára e nem dispara,
será que é quando a alma perde a sua ranhura mais vital?
Dor, que dor que dói mais?
Será que é quando a pele vira ruga, vira encalhe,
será que é quando o amor vira estátua, vira nada,
será que é quando as nossas veias se rasgam numa alegoria infernal,
será que é quando o caminho da frente fica o de trás?
Dor, que dor que dói mais?
Será que é quando tudo em volta vira erva daninha,
será que é quando viramos baratas-tontas, bêbados que perderam o rumo de volta,
será que é quando esquecemos o tempero, o cheiro, as papinhas,
será que é quando esquecemos o nosso porão, a nossa raiz, o nosso cabresto?
A dor que que dói mais não corrói o nosso peito, nem tampouco rebola louca numa coreografia qualquer,
também não se esconde entre os nossos calos, nossas berebas ou nossas mesas de bar.
A dor que dói mais é aquela coisa que fingimos que deixamos longe, lá longe,
feito monge que nunca saiu da sua contemplação,
feito paisagem escondendo o bicho rasteiro,
feito algo que parece que não vale nada,
que não incomoda, não avisa quando chega, não deixa rastro por onde passa, não vale um vintém algum.
A dor que dói mais é aquela que não conhecemos.
Por isso só tememos,
por isso ela nunca vai parar de pulsar, de cravar suas garras,
de vigorar cada vez mais as suas taras,
de ofuscar cada vez mais com as suas senzalas,
de fartar até demais com as suas rendas sem fim.
Feito sombra, feito bicho-papão que não sabemos de onde vem,
e que cada vez fica maior, fica pior, fica pior por certo,
fica cada vez mais perto, mais perto.
E vai acabando com os nossos músculos, muros e varandas,
vai dissecando cada fio da nossa alma com toda calma desse mundo,
vai abortar os filhos que tivemos e os pais que iremos ter,
vai nos levar para o colo do inferno, gargalhando como ela só,
vai nos fazer entender que nada mais vale a pena, que essa ferida nunca mais vai fechar, que o nosso caminho só pode mesmo dar em nada.
Só pode mesmo dar em nada.