O EMISSÁRIO

Somos duas crianças imberbes que ainda não aprenderam a andar,

duas folhas em branco esperando o primeiro rabisco,

dois pedaços de tecido só esperando o arremate final.

Ainda não nos conhecemos, nem nos vimos de longe,

sentimos a sombra do outro quando estamos sozinhos,

quando a dor espeta a sua íngreme fagulha na sola do pé,

quando a fome bate fundo revelando que estamos plenamente ocos por dentro.

Queremos saber do outro, por certo, mas ainda não é a hora,

queremos levar o outro pra nossa cama, contar nossas histórias,

rir junto de tudo o que for possível, de tudo o que não for possível,

dividir cada raio de luz que o dono do show alvejar em nossas almas.

Temos muita vontade de capturar o cheiro do outro, até os mais malfeitores, aguados e azedos,

queremos muito desnudar os sonhos que não tenham brotado de outros sertões,

que sejam filhos de outros ventres, que sejam frutos de outros poetas,

que sejam atalhos de outras encostas, outras pastagens.

Quando batemos à porta do outro, as teias de aranha indicam que nunca teve alguém em casa,

quando gritamos o nome do outro, estraçalhando cada vidraça do pulmão, o silêncio vem de volta como um náufrago chegando na terra firme,

quando buscamos esse pedaço de chão que não é nosso, um buraco imenso emerge à nossa frente com a candura dos generais, com a certeza dos rinocerontes em plena debandada.

Se tentamos capturar esses pensamentos fugidos, arredios, tardios,

o que retorna é uma água turva, em idioma estranho, vestindo uma roupa encardida que não é do nosso número, que não é da nossa varanda, que não faz parte do nosso desjejum.

Se tentamos fecundar essa barriga com o que temos de mais nosso,

o que revoam são filhos que não tivemos pedindo o peito, e mães que não cremos querendo só um pedaço de pão, só um colo para exilar suas dores e amores, querendo só um fôlego para seguir em frente nessa vida.

E hoje, quando tudo enbranquece e range sem parar, descobrimos que sempre fomos acordes da mesma melodia, sempre ficamos juntos, nessa poeira de cais, jogando pedrinhas no mar sem jamais parar,

sem jamais entender o sentido de tudo isso.

De verdade, somos gomos da mesma história, somos passos do mesmo andarilho que vive dentro da gente, somos um bica jorrando suor quando todo carnaval se desnudou em cinzas.

Somos a farda que um dia iremos vestir para receber o emissário mais pungente, só para cerzir, ninar e bendizer, num acalanto de uma manhã qualquer.

E que sempre esteve calado, atado e fincado nos recantos mais enviezados do nosso coração.

Nos rincões que os nossos olhos nunca teimaram em trazer para dentro de si.