ALGEMAS DO AMOR
Falar do amor como soubéssemos que besta é,
como um leque que faz vento num vácuo sem-fim,
como aquela ré que todos acusam e ninguém tem coragem de fechar suas algemas. E nem, tampouco, olhar para elas.
Falar do amor sem usar a voz, os punhos ou fios dos pentelhos,
como aquela velha voz caindo aos pedaços, tentando passar pela fresta da porta,
como aquele finado desejo, tentando cravar um punhal em si próprio,
como um passado que um dia foi tudo e agora nem cabe no nosso ralo.
Falar de um amor que a gente costurou na cama com os fios suados de um gozo qualquer, misturando nossos semens com essas línguas que cospem tantas dúvidas em cada novo galope,
como uma poça de sangue que a gente se lambuza até não poder mais, até não poder se fartar demais,
como um riso que se desembesta ao primeiro clarim de um simples bom dia.
Falar do nosso amor sem vírgulas, nódulos, nem bolos de fubá,
arrancado com as unhas as últimas gotas que a sede deixou de untar,
de enxugar,
agradecendo os aplausos que ninguém fez, para que todos o deixassem voar, deixassem voar.
Falar de um amor que só cabe em todas as mãos do mundo juntas,
que é nosso rebento, desfecho, destino e porto predileto,
que é nosso gingado kamikaze, nossa meretriz mais pura, intocada, imaculadamente perdida, insanamente fraterna.
E que hoje, sem esquecer do que somos e no que cremos, iremos abraçar com o que temos de mais rinoceronte, com o que temos de mais avesso e ingrato.
E assim, compassando cada olhar e cada respirar,
vamos seguindo enviezando cada nova pedra que vier nos abraçar,
até que, num belo dia, acredite,
vamos descobrir que todo esse amor não passou de um goteira que permitiram acarinhar com todo o amor que couber nessa vida.