BARCO ABANDONADO

Menina, vem logo pra casa.

O almoço está esfriando na mesa, as crianças estão para chegar,

a nossa música já ralou de tanto tocar sem você ouvir,

não tenho mais desculpas para dar a mim mesmo.

Menina, cadê você?

Já liguei para tudo que é amigo querendo saber das suas pegadas,

já percorri infinitas vezes o nosso último caminho junto, sem chance,

já reli as suas cartas e bilhetes atrás de uma pista, e nada.

Menina, diga lá onde está,

a minha roupa está transbordando no cesto, o leite azedou esperando seus goles na nossa xícara predileta,

a minha voz já ficou rouca de tanto sussurar seu nome nesse travesseiro encardido de tantos anos.

Menina, poxa vida...

o sol já desistiu de vir todas as manhãs para nos fazer vivos de novo,

acabaram os meus estoques de orixás para pedir uma luz, uma trégua,

a minha fantasia de arlequim não aguenta mais um novo remendo,

ou uma nova medalha.

Menina, manda uma pista só,

minhas veias estão entupidas de cachaça barata,

quanto mais tento escalar nas suas lembranças, mais manco e cego ficam meus versos,

mais vadio e oco ficam meus desejos, meus pastos não conseguem mais respirar, e nem forrar de lama tantos desejos,

quanto mais espero laçar teu cabresto, mais cigano e nordestino fica o meu suor, fica minha saudade.

E agora, correndo nas dobradiças do vento, só me resta avarandar cada respingo do que um dia foram esses sonhos de gazela,

a nossa fada abandonou o barco com toda a nossa tripulação em pleno baile de carnaval.

E assim, desnudo e dissecado em cada quinhão da mais distante alma,

vou colocando calmamente você para dormir.

Adeus, menina. Agora podemos, finalmente, morrer em paz.