MEUS CORDÕES DE SAPATO
Obrigado por esperar a minha poeira baixar, a minha barba crescer,
aguardar o meu barco sair da deriva e voltar pra casa,
ter a paciência de colocar de pé, de novo, todas minhas peças do dominó caídas nessa vida.
Obrigado por não ter sebo nos ouvidos quando só precisava de um ombro que não estivesse pontiagudo,
nem, tampouco, ter escondido a sua maçaneta quando só via portas fechadas na minha tribo,
também ter sido capaz de apontar pra fora quando todos meus dedos estavam imantados voltados só pra dentro de mim.
Obrigado por mostrar que havia algo além de vida nessa vida,
que quando o rio fica cheio, pode também não transbordar,
se o leite fica azedo, o problema pode ser o azedo, e não o leite.
Obrigado por desencravar as tantas unhas que tenho na alma,
por querer, e saber, traduzir o meus gritos de glória, os meus urros ejaculados pelos fracassos imberbes do sonho,
por ter tido o pachorra de entrar na minha mata, tão cerrada pelos puxões de orelha de todos dias.
Obrigado por ficar no chão só esperando cair nas suas mãos,
não desistindo de mergulhar, mesmo estando nas águas geladas da minha indiferença,
e nem colocando tampa na panela em que fumegaria os meus desejos mais tardios, mais hereges, mais morenos.
Obrigado por dormir comigo mesmo quando isso fosse o nódulo mais putrefato do seu coração e da sua razão,
obrigado por amarrar os cordões dos meus sapatos quando a barriga até me impedia de vê-los,
obrigado por grudar sua língua na minha, quando ela estava seca, áspera, arredia, toda vadia,
e, sobretudo, obrigado por ter reconhecido meus sinais de fumaça, no momento em que os ventos sopravam todos meus sonhos para o infinito.