LOUCA ARANHA
Lembro de cada fio do seu cabelo,
conheço cada rasgo da sua pele,
cada face da sua alma.
Já fiz da sua saliva a minha seiva predileta,
já fiz dos seus olhos o meu cão-guia derradeiro.
Tive você como o bálsamo do meu sangue,
a ponte que me tirava do chão movediço naqueles minutos pontiagudos de todos os dias.
Fiz questão de traduzir todos seus acordes desafinados,
fiz questão de mergulhar fundo no que você tinha de mais escuro, de mais entrelaçado, de mais órfão.
Não me cansei de regar seu peito sempre que a vida lhe desertava sem dó, desertava sem dó.
Nem, tampouco, abandonei seu barco quando tudo era guerra, quando tudo era adeus, quando tudo estava esquecido por Deus.
Até não me furtei de untar de sonhos a sua alma quando só o que se via eram rumores, tumores e sumos azedos.
Fiz isso porque acreditava que os passos ficaram mais coloridos quando sombreados, fiz isso porque teimava em compartilhar as nossas vozes, os nossos acordes, os nossos cabrestos.
Fiz isso porque nada era mais aço, nada era mais tudo do que esse caminho que arrancamos do destino e fizemos mergulhar nas nossas veias, num tiro kamikaze, num grito que deixaria o mundo atônito.
E, então, como se fosse uma fada que vem de um confim qualquer,
você rasga suas anáguas de porcelana barata e, num relampejo paraguaio, corta seus pulsos como uma louca aranha que já não sabe mais de onde veio, nem pra onde vai.
E eu, escravo desse caderno rabiscado, mofado e molhado, volto pra nossa cama e, então, vejo que lá não está mais você.
E que também, de verdade, lá não estou também.