O TREM DO RETIRANTE
Moroso roda o trem, eterno vagabundo,
aos solavancos sobre os trilhos deslizando.
Despreocupado,
à toa,
indiferente,
mudo ao sofrimento,
alheio
ao sofrimento fundo,
dessa maldita casta,
escórea sertaneja,
faminta e desgraçada,
eternamente andeja,
que busca a Canaã da Terra Brasileira.
É o trem do retirante - e este é como um animal
largado ao seu destino,
ao ermo,
ao vendaval,
à fome e ao desabrigo, à morte que o espreita.
Resfolga a velha máquina insone, tresnoitada.
Em baforadas solta aos ares a fumaça,
que além,
negra retinta,
aos poucos se adelgaça
e após desaparece ao perpassar da estrada.
Cochila preguiçoso e lerdo o maquinista.
Crepita o fogaréu, que ao punho do foguista,
recebe a seca lenha – o combustível farto
deste Sertão queimado ao quente sol de agosto.
Boceja o maquinista,
acorda,
esfrega o rosto.
Solta a pressão à máquina. Irrompe, estrídulo, o apito.
Além, o panorama é simplesmente tétrico!
Arvores secas - possa o verso descrever -...
hirtas e tristes.
Morta aquela,
esta sem ter
à hora derradeira um pingo d´água.
Céptico,
o velho juazeiro acabrunhado mira
o sol que paira além.
Baqueia a velha imbira.
Devora o arvoredo,
escalda-o o sol, calcina.
O próprio sol tem sede e busca onde beber.
A Natureza nega a gota d´água ao ser
da própria criação.
E o negro horror domina.
Lá roda o trem, moroso, aos solavancos.
Grita no range range atroz de ferros velhos, gastos.
Surge à distância, agora, uma cidade.
O trem apita.
Põe-se Flora à janela, enquanto pára o trem.
Contempla, acabrunhada, o imenso vai e vem,
da aglomerada gente à frente da estação.
Rapazes de gravata e moças sorridentes,
no gargalhar feliz e doce, indiferentes
passeiam lado a lado.
Adiante,
a multidão daqueles que não tem o que comer,
deslisa em volta ao trem pedindo um pão,
um níquel,
com que sacie a sede
e mate a fome
- o agro e triste pesadelo aplaque.
A turba pisa,
esquálida,
amarela,
acabrunhada,
ante o tristonho olhar daquela moça pálida,
que em nada mais sabe pensar, senão na própria fome.
Cá na segunda classe, o trem é um antro imundo.
E ainda trepa à classe, aqui, um iracundo,
faminto povaréu a comprimir-se.
O trem some na estrada após um longo apito que ensurdece.
Resfolga a máquina, o tempo é longo como a estrada,
lerdo e cansado, bruto assim como a jornada.
E vão-se as horas uma a uma - a noite desce.
Roda o noturno sempre indiferente a tudo.
E o poviléu faminto e triste, quedo, mudo...
Ninguém quebra o silêncio à classe, todos pensam.
Aqueles corações misérrimos despregam-se
do sórdido ambiente e no passado apegam-se.
Quanta recordação longínqua eles condensam.
E Flora volve o olhar atrás, volta ao passado.
Seu cérebro repisa um turbilhão de idéias.
Formigam, mansamente os pensamentos.
A lembrança
das quadras infantis,
do tempo afortunado,
quando ela era a flor mais bela do arraial
e não previa nunca o sofrimento e o mal.
Tenta sorrir: em vão, pensar em seu futuro.
Enxerga além, tão só a vastidão do escuro.
Envolve-a um gosto amargo,
imenso,
de desgraça.