Por que não a beijei?
Olhou-me no fundo dos olhos e procurou por alguma reciprocidade. Não sei o que estava rolando, ou fingi não saber. Na verdade não sabia.
Escondeu minhas chaves colocando suas mãos para trás, tentei tomar a força, claro que com o Maximo de delicadeza possível. Era de se prever. De frente um para o outro, em um estado hipnótico que vai de cinco a dez segundos de uma paralisia física que mais parecia permanente do que momentânea.
Tentei pensar em algo, depois tentei não pensar em nada. Completamente desnorteado; recuei.
Não foi a primeira vez que meus instintos me deixam com remorso. Há um bom tempo atrás deixei escapar, de maneira parecida, um beijo. Claro que me arrependi, e dessa vez foi pior. De algum jeito foi pior. Não sou nenhum um pouco romântico, entretanto o romantismo me apronta constantemente travessuras que costumam me deixar sem jeito e mais do que isso, me deixam sem dormir.
O que poderia acontecer depois do beijo?
Estúpido. Agora não adianta.
Da primeira vez eu era um garoto e não tinha parado para martirizar-me. Entretanto quando tudo ocorreu pela segunda logo me ocorreu o passado. Para que não haja duvidas, as garotas eram diferentes, contudo ambas são bonitas e cobiçadas e, óbvio que por mim também.
A menina de que me recordo estava no auge dos seus treze anos, a mesma idade em que eu estava na época. Ela não tinha namorado, e eu nunca fui realmente comprometido. Era véspera de natal. Eu estava na casa de minha avó por parte de mãe, toda a família estava presente, inclusive a dela que morava em frente e tinha uma proximidade afetiva muito grande com uma de minhas tias. Estávamos na sala, em certo momento ficamos sós, conversávamos qualquer coisa. A TV estava ligada, lembro-me de ter levantado e trocado de canal, quando me sentei novamente ela voltou ao canal anterior, fiz menção de tomar o controle remoto, ela me tacou uma almofada, me provocando, então como uma dose de falsa ingenuidade, fui para cima dela, pausa dramática, mão segurando mão, olho no olho, e como se tivesse sido forçado, eu a solto, abaixo a cabeça e saio da sala em direção ao nada. Naquele dia dormi tranquilamente, no outro dia acabei ficando com outra vizinha, essa era comprometida com o fanho dono da padaria da esquina.
A mulher que me fez desenterrar essas lembranças e mais uma vez ficar sem dormir, tem namorado, e, diga-se de passagem, é um relacionamento muito longo. A minha falsa ingenuidade não foi tão falsa assim, pelo contrario eu realmente não entendi o que aconteceu.
Estudamos na mesma universidade, porém em cursos diferentes. Moramos longe do campus e para chegar até ele nó utilizamos uma van particular. Durante a semana vamos em carros diferentes, mas da mesma empresa de transporte. Por conveniência aos sábados (sim, tenho aula aos sábados), vamos no mesmo veiculo.
Já nos conhecíamos a algum tempo, conversávamos sobre amenidades e nunca com intimidade, ela nunca me falou do seu namoro e eu também nunca perguntei. Num sábado desses, voltávamos para casa, nós dois somos uns dos últimos a serem deixados em casa. Nesse dia ficamos apenas em quatro, eu, ela, a mestiça e o motorista. A conversa ficou diferente, inclusive aconteceram caricias um pouco mais intensas do que o de costume. Achei estranho porque nunca havia existido tal liberdade, não dei muita bola. Dentre os três restantes na van eu era o primeiro a descer, quando cheguei em casa, me despedi de ambas. Desci do carro. Ao buscar minhas chaves para abrir o portão percebi que as deixei cair e antes que o motorista arranque. Através da janela peço a ela que veja se minha chave esta no banco em que eu estava. Antes de terminar a pergunta vejo que minhas chaves estão em suas mãos. Peço. Ela diz que não. Diz que eu deveria tomar a chave. Entrei novamente na van. Ela colocou as mãos para trás. Bem... aqueles segundos intermináveis em que olhou-me no fundo dos olhos e procurou por alguma reciprocidade. Não sei o que estava rolando, ou fingi não saber. Na verdade não sabia ou não queria saber.
Após distanciar-me de sua boca sem beijá-la já podia sentir o aperto no coração e ouvir minha consciência, aos berros me chamando de idiota.
O que poderia ter acontecido? Não sei.
Sim. Eu me arrependo.
Desde então não há uma noite, um momento de nada, em que eu não me pergunte; por que não a beijei?