UM POUCO DE MINAS - V

OS DAQUI

Os daqui não veem a vida passar

Veem a paisagem

(a mesma de todas as tardes)

Só precisam de um cigarro

e um banco de tábua

fincado num ponto mais alto

ao lado da porteira

O sertanejo é dado a silêncios

Se chega alguém,

está livre o lado esquerdo do banco

E o silêncio se mantém,

até que a vagarosa prosa vem

entrecortada de reflexões

Aparentam saber pouco

Mas sabem muito de um mundo

que não é de todos

Respeitam  o sol  que castiga

Deixam-se reger pela lua

E fazem da  madrugada começo de  dia 

Acompanha-lhes uma dignidade pontificial

Seja no trabalho, nos cortejos ou nas festas

Não choram nem  riem demais

Comedidos,

Não enchem pratos

Não se empaturram de doces

Nem se deixam embebedar

Mas, à permanente fome de amor, não resistem

Porque é por amor que existem

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GADO DE LEITE

 

É bonito ver o gado 

deitado na estrada

depois da ordenha

e da amamentação das crias

Família reunida

vacas, bezerros, novilhas

Quando um barulho  anuncia

automóvel que  vem vindo

permanecem em tranquilidade (ab)surda

-Gado de leite sem lei!

Censuram os berros humanos

Levantam-se calmamente

quase indiferentes

à máquina descontente

Se pudessem diriam

Aqui é lugar de se fazer parada,

tomar um café-com-leite

e dialogar sossegadamente

com a paz do ambiente 

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DESCONFIANÇA

Um dia, alguém chegou falando

de água salgada e peixe de quilos  

Achei aquilo lero de pescador,

...maneira de dizer

que os mandis e lambaris

que há nos ribeirões daqui

não têm valor

Quis então conhecer o mar  

Vi que é um lugar bonito

onde começa um outro mundo

chamado infinito

Vi de perto peixe grande

Desfiz a dúvida, voltei feliz

Me aventurar no mar eu não quis

Só louco se embrenha

numa travessia desconhecida

que talvez nem volta tenha

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HOMENS E BICHOS

A cobra rasteja

e ninguém pensa em seus porquês

se ela procura alimento,

se foge da areia quente  

ou  do bico da seriema

armam-se da irracional certeza

de que ela passeia

à procura de pés alheios

...ela tenta proteger-se 

sob as pedras do terreno,

mas acaba morrendo

vítima do humano veneno

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TEMPERAMENTO

  

Temperamento não é coisa só de gente

Natureza também tem

Já vi 

chuva geniosa

que só pára quando quer

Água de ribeirão

que desce sem fazer parada

com a pressa de quem tem

de cumprir hora marcada

Há flores bem humoradas

que se abrem, fecham, mexem

se exibindo para o sol

Existe bicho bravo, cismado,

réptil medroso

que num piscar de olho desaparece 

Alguns insetos são ingênuos

confiam em nossas mãos

passeiam em nossos braços

- somos seres parecidos

nossa mania de grandeza

é que tem nos impedido

de viver em harmonia

com as coisas da natureza

 

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CRIAS

Barrigas que abrigam

Convites a adivinhações

gravidez, um mês,

adiantada gestação

dois, dez filhotes

Barrigas crescendo

e a mesma sensação

de apreensão

e estado de graça

seja qual for a raça

Contrações, fadiga

dor deitada na lama

na grama, na cama

Barrigas-promessa

cabeças apontando

para a vida que começa

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ELE

Uma coroa de ouro destacava o sorriso perfeito

Cicatrizes do lado esquerdo do peito

davam-lhe ares de cobiçado guerreiro 

Faltou-me sorte para vencer a batalha

e declará-lo rei do majestoso leito

que para nós dois  preparei

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Maria do Carmo Fraga(MarianaMendes)
Enviado por Maria do Carmo Fraga(MarianaMendes) em 14/06/2019
Reeditado em 11/08/2023
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