ÀS MARIAS, a dor da violência doméstica (repost)

a vida seguia sua cadência incontida

ordens, roupas, ardor, angústia

a dor guardada nos porões da retina

questionando os porquês dessa vida dúbia

desesperança latente, carente e despida

como salvação resolveu se casar

momento de felicidade quase pecadora

sentia medo até de anunciar

como se fosse da loteria a mais nova ganhadora

pra evitar a inveja, resolveu se calar

Maria se calou e seguiu sua sina

"embuchou em péssima hora"

a vizinhança toda dizia

o marido ouvia próximo a vitrola

a antiga felicidade fora suprida pela pinga

como boa esposa que era

lavava, passava e cozinhava

seu corpo miúdo, bucho pesado,

quase uma Quimera

a autoestima descia pelo ralo

junto a alegria dos olhos dela

atravessava o banheiro

nem olhava pros lados

foge do que vê no espelho

como quem foge do carrasco

dia a dia o homem se atrasava

"será que está no boteco, ou no colo da outra?"

a vizinhança murmurava

a janta estava gelada

quando o homem chegou...

cambaleou, arrebentou a porta dando risada

Maria os olhos arregalou

'essa noite ele me mata'

foi o que ela pensou

'eu não posso fazer nada'

vagarosamente ele se aproximou 

"DESSA NOITE VOCÊ NÃO PASSA"

assim vociferou

na mão esquerda, a peixeira já empunhada

Maria correu 

aos prantos alcançou a cozinha

jogou tudo o que viu pela frente

panelas, copos e tudo mais que havia

a fúria fora atiçada

o homem desgovernou

cambaleava graças a cachaça

se escorando na parede a alcançou

'a morte cheirava a pinga barata'

foi o pensamento que quase a desmaiou

o algoz a agarrou pelo braço

a mulher arrepiou

o homem estava descontrolado

Maria tremeu, com os olhos implorou

a ira dominara o carrasco

foi aí que ela se deu conta... 'ele nunca me amou'

seu amado enrijeceu,

sua face revelou-se monstruosa

a mão com a peixeira se ergueu

'teria chegado a minha hora?'

por milésimos de segundos

Maria não se tornou estatística

ela foi mais rápida

com o braço livre

escondia uma faca 

desferiu um golpe certeiro

bem no centro do peito

seu carrasco estatelou feito caça alvejada

como quem lava a própria alma

o golpeou por trinta vezes

a alma fora lavada

mas não era por qualquer sangue

era pelo sangue de quem amava

NÃO, ESSA NOITE VOCÊ NÃO ME MATA!

exausta

Maria escorreu lentamente até o chão...

...misturou-se ao sangue quente

tornaram-se um só

fruto do mesmo ventre

renasceu naquela noite

ao matar sua 'serpente'

a faca despencou ao lado

admirou o corpo estirado a frente

o sangue jorrando das fissuras

como jorrava há anos de sua alma ardente

drama diário, aquela era a sua sina

o marido chegava em casa mamado

a pele dela era usada como terapia

o homem fora abusado

quando ainda nem o nome escrevia

há décadas estava "amarrado"

mas que culpa tinha Maria?!

Maria guardava um grito calado

a vizinhança não sabia

ele dizia que se descobrissem

do dia seguinte ela não passaria.

Maria pegou o telefone

com mãos trêmulas discou à polícia

'antes que me questione

meu marido está no chão da cozinha

seu corpo nem tem mais sangue

o matei por mim e minha filha

estou grávida de oito meses

era ele, ou nossa vida'.

...

estatística Maria quase se tornou

mas com quantas outras Marias

essa mesma sorte não se consumou?

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Lâmpada de Porão
Enviado por Lâmpada de Porão em 11/12/2019
Código do texto: T6816290
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