Proposta de gente

I

A boca, calada, não é boca

Não cumpre sua função

A boca é boca enquanto fala

Fora isso, é apenas

proposta de boca.

Exatos, olhos assim não são olhos

(não olham) exatamente,

Fitando o chão

Proposta de olhos

entregue ao mundo.

Os braços tíbios

Envergonhados

Esperando o ônibus no ponto

Quietos. Sem alarmes até a hora certa

(apenas um sinal para o motorista parar).

II

Assim, com a cabeça inclinada

O arremedo de gente se atrasa para o trabalho

Vida que não cumpre a sua função.

Eu devo ter ouvido algum sussurro escapando

Daqueles olhos, não tão olhos, exatamente

Em cima daquela boca quieta, muda!

Ah! Eu devo ter ouvido...

E ouvindo assim, é claro que tudo parece nada:

o ônibus que se atrasa; o sono que custou um pouco mais;

a noite que demorou acabar. Eu devo ter ouvido!

Ah, claro que eu devo ter ouvido esse grito se fabricar lá dentro,

Na usina da vida que tem que escorrer para fora de nós todos os dias

E também, por que não, em dias iguais a esse.

Eu devo ter ouvido um grito correndo nos subterrâneos

Onde correm os ossos, onde escorre o sangue

Um berro se formando no mesmo canto onde se forma o canto.

Eu devo ter ouvido tudo isso.

E que manhã! Essa multidão de seres mudos (por fora)

Tão vizinhos dos galos (por dentro), que, se ouvissem, acordariam

Como o fazem, aliás toda manhã:

e acorda o gado novo que dá leite, e as vacas, e os homens

que separam suas tetas em grupos de três, de quatro;

e acorda essa gente toda que ruma, sem rumo,

aos distritos industriais e aos prédios comerciais,

e às escolas e aos ônibus (esses varais de gente);

e acordam todos esses troncos vazios.

III

E vamos rumando mudos

Para dentro da morte

Da mesma maneira, aliás,

Que o dia invade a noite.

Eu devo ter visto uma vida

E ela devia se arrastar

Nos subterrâneos ali

Como se fosse um esgoto.

Não como um jardim

Que cresce ao lado de um quintal.

IV

A vida devia estar na cidade

Debaixo de cada teto

Dentro de cada casa

Sob qualquer pele

Circulando num fluxo sangüíneo

Menos como uma clepsidra

Mais como uma ampulheta

Levando cabelos brancos

Aos homens.

(é assim que a vida se arrasta

nesse abraço dentro, lá dentro

intestinal, cardíaco

onde se esconde e abraça a morte

sendo ela mesma as duas)

V

A vida é isso mesmo

Ela é o cabelo branco que tentamos evitar

É o sono que custou ir embora e nos fez atrasar

E o mamão amarelecido e podre no balcão da quitanda

Com seu cheiro, com sua nódoa podre escorrida

Em riscos feitos a faca, simetricamente distribuídos

Em números de cinco, para não amargar

Mas que, principalmente, não conseguimos vender.

Deve ter havido um fato qualquer

Acontecendo nos subterrâneos daquele homem atrasado

Mal vestido, fedendo a gente logo pela manhã

Que me fez ter percebido a vida acontecendo

Secretamente, como no mamão que não foi vendido.

VI

Dentro de mim, também, silenciosamente

Deve estar a minha vida escorrendo

Enquanto reparo:

Uma manhã com um espelho em minha frente

Deixando escorrer sua nódoa por cada poro

Num rosto vermelho e triste, mas, principalmente

Calado.