VERGONHA
Tenho vergonha,
não da minha nudez,
mas do que visto para encobri-la,
o linho podre das convenções,
o brim manchado por leis e decretos,
a sarja dos estupros e assassinatos,
a lã que esconde a mão que fere,
a seda que turva os olhos dos que estão acima,
o pano de chão que limpa o sangue derramado,
a cortina rasgada por assaltantes invisíveis,
o peito de sorgo aberto e o coração que chora...
Tenho vergonha dos meus versos,
que busco tratá-los com asseio e higiene,
tenho vergonha das minhas palavras
como doces de uma fábrica de guloseimas,
vergonha por recitá-los à platéia asseada
enquanto mendigos passam por mim,
cheios de vergonha pela vergonha
que ouso esconder...
Tenho vergonha das igrejas cheias de fiéis que rezam
a um deus sem sapatos que usa anéis de ouro,
vergonha dos palácios de reis e imperadores
que imperam suas alegrias sobre tantas dores,
tenho vergonha do espelho em que me vejo
e, atrás de mim multidões de aflitos que gritam,
vergonha da minha barba bem feita
diante de tantos rostos maltratados,
tenho vergonha de mim por estar sentado nesta cadeira
escrevendo enquanto deveria estar embarcando
n'algum navio rumo à África onde muitos morrem
por nossa cobiça e desprezo...