Uma curta história de vida (2015)

Quando eu abri meus olhos

No meio da lama

Ele me disse tudo bem

E aproveitou para me dar algo

Que disse que me faria bem

Ela sabia que era tudo um truque

E mesmo assim acendeu um cigarro

E ficou ao seu lado

Quando ele disse que queria partir

Eles então andaram até mim

Depois de algumas taças de vinho

E um champanhe ruim

E como ele não teve coragem

De abrir a boca

ele disse que estava cansado

Ela se agachou e sussurrou

Com seus dedos suados

Você vai conseguir tudo o que quer

Mas pelos motivos errados

Então ela riu

e tragou profundamente

Na ponta dos dedos

o filtro queimou sua pele

E ele tossiu

Disse que não era bem assim

Mascando um chiclete

Ela olhou para o chão

E não quis discutir

Eles partiram

Era quase meio dia

A lama fervia

Porque era verão

E eu cansado daquela rotina

Quis pegar o último trem

Mas já era de tarde

Vi as folhas amarelas

Agitarem no concreto

a terra seca como o vento

Eu sentei na janela

E decidi que naquele inverno

Não iria plantar

Por isso me mandei pra metrópole

E comprei um jornal

Lá sentei num banco de parque

E tive saudades de casa

No meio do intervalo do trabalho

Eu te vi andando descalça

você não teve coragem de retribuir

Eu corri e corri

Choveu e você desapareceu

No meio da multidão

Seu vestido arrastando no chão

E as mãos no chapéu

Eu então desisti

E esperei o inverno chegar

Você morava no quarteirão

Mas eu nunca me viu passar

Juntei uns trocados

E pensei em comprar um violão

Mas na entrada

Um velho me barrou e disse não

Todo o tempo, meu querido,

Está passando corrido

Você precisa saber que a vida

É um roteiro falido

De um filme ruim

Me pediu umas moedas

Falou de Hitler e Vargas e disse

até um vagabundo

tem pena de mim

Ele me abanou de longe

Eu meti as mãos no bolso

E afundei o pescoço

Nas barras do metro

Cheguei no fim da linha

A cidade anoitecia fria

Eu resolvi partir

Cheguei no bar já era noite

Você calçou seu sapato

E desastrado, pisou no meu pé

me virou do avesso

Disse cuidado, meu amigo

Ou você engole todo o mistério

No primeiro gole de gim

Você então me levou até o quarto

Descalçou seus sapatos

E me pediu pra ficar

Eu estava um pouco atordoado

Mas deitei ao seu lado

E aprendi a te amar

E quando o sol raiou o dia

Eu ouvi os passos dela

E sua voz dizer alta e clara

‘Sim, eu aceito’

Meu bem, se eu soubesse

Que ela estaria naquela capela

Naquela hora do dia

Eu saberia ao olhar nos olhos dela

Que ela nunca seria feliz

Para quem nem fechou os olhos

Quando o padre disse para o noivo

Pode lhe beijar

Eu a teria impedido de casar

Você então suspirou e deitou

sua cabeça em minhas mãos

E eu não pude deixar de notar

Que seus lábios estavam secos

E sua voz estava falha

de tanto chorar

E apesar de eu saber

Que era por minha culpa

Eu não tinha palavras

e só olhei para lua

Até você se cansar

Eu deitei do seu lado

E você fugiu para a janela

Acendeu um tabaco

E eu cheguei a rir ao pensar

"você nunca vai ter dinheiro

Pra comprar um cigarro"

Então você esperou uns meses

Até seu isqueiro acabar

E enquanto se reacendia

Nessa manhã nublada e fria

Você desabotoou sua camisa

só porque não tinha mais lágrimas

Pra chorar

engoliu um soluço

Desenhou sua boca na minha língua

E disse "eu entendo

Mas você ainda pode me usar"

Eu tentei te escutar

Mas no fim da manhã

você ainda dormia

Fui para o banho pensando

Se você um dia seria meu

E quando enfim deitei ao seu lado

Te vi tão sossegado

Chorei até meu rosto doer

No outro dia

Eu estava me sentindo novo

Mas algo tinha mudado

Quando eu te disse

Que pensava em voltar para casa

Já era o último verão

E a lama que antes me prendia

Agora me fazia ter saudades

Daquele pedaço de chão

Você não me pareceu surpreso

Apenas me abraçou e me contou

Que há muito tempo

Também já havia amado alguém

Eu parti

Estava fugindo da cidade

Como nos tempos de mocidade

Em que eu pensei haver algo a mais

Foi então que eu ouvi uma gargalhada

Que me trouxe uma lembrança

Tão longe e tão familiar

Eles chegaram como um fantasma

Rindo alto

O vinho virado em vinagre

E o cigarro já apagado

Eles riram e riram

Até que eu ficasse calado

Seus dedos entrelaçados

Como se nunca tivessem brigado

Ela se abaixou e sussurrou

Tão simples e complicado

É claro que você foi malcriado

Você ainda não entendeu

que a vida é simplesmente assim?