A Morte de Narciso (último poema do ciclo de Narciso)
Sobre meus braços, meu corpo.
Arrasto-me em féretro
sobre os paralelepípedos
ante meu olhar os vidros
das vitrines.
Que Verônica ungirá meu rosto
com o linho branco
quem cantará anunciando minha dor?
Passo sobre os vidros
neles me espio e me contemplo
e meu rosto morto se reflete
entre as gazas do gorgurão
sobre o par de tênis
o corpo do manequim em sunga de verão.
" O vos omnes qui transitis per viam!"
Que ouvido recolherá na concha o lamento
desta língua morta
e arrancará da palavra adormecida
a história deste rosto?
E eu transito pelas ruas.
Meu corpo exposto
meu rosto exposto
morto sobre o vidro de meus olhos
minhas mãos entrelaçadas
em minhas mãos
órfãos um do outro a caminho do precipício.
Ali um jovem dança o break.
Meus olhos param e procuram
na cor da pele a própria cor.
O tênis Nike faz riscos no ar.
O jeans barato contorna as formas.
No rosto negro meu rosto e meu rosto.
Ah! Os paralelepípedos!
Eles, única e sempre via
meu sudário a acolher-me
no óleo sujo do chão
do estacionamento do ônibus.
Ali a rosa-dos- -ventos e descaminhos.
Ali os mil pontos cardeais do infinito.
Mas as paralelas se cruzam
em minha testa fazem cruz
a marca de Caim.
Tomo meu corpo nos braços
acolho-o junto ao peito
afago-o e beijo-o
embalo-o sentado no banco da praça.
O ônibus chega.
O ônibus parte.
Nele se vão os mil olhos
minha miríade de olhos
levando-me em partes
lâminas partidas às mil sepulturas.
Ó vós todos que transitais pelas ruas!
Mas quem entende a fala dos mortos?
Que ouvido será a concha para meu lamento?
As conchas fechadas em si
ouvem todas elas o ruído do oceano.
As conchas para si mesmas se bastam
e o mar ruge eterno sua canção para elas.
Mais além o som do berimbau
a capoeira.
Corta o real a navalha
nada entre uma parte e outra.
As mãos grudam-se nos paralelepípedos:
a história se faz escrita com os pés
na folha da brisa.
Leio-a história volátil.
Gravo-a nas retinas
e a mostro palavras desfeitas
desmanchadas já na brisa tardia.
Sobre a testa a marca:
ponto cardeal a banir para outros nortes Caim
mãos manchadas do próprio sangue.
O negrinho desenha o céu com o tênis Nike
na eterna ginga do cio.
A capoeira gruda-se ao chão unindo céu e terra.
Na vitrine o manequim em sunga de verão:
na vitrine meus olhos escrevem
minha história en passant.
As andorinhas voltam às árvores.
O sino toca o começo da noite.
As portas da Casa Glória descem sobre os vidros.
Um caixeiro corre atrás de uma balconista encabulada.
Um tenor esganiça num long play riscado.
Nas minhas mãos este livro.
Páginas brancas e entre tantas páginas
a minha página branca
tomo único na estante
no vazio esquecido
a um canto só.
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