MEDITAÇÕES DE NARCISO III
À frente do espelho
no encontro marcado
nos passos deixados atrás
a face se recompôs
miríades de ângulos agudos
obtusos ângulos a me perverterem
na retina cansada dos olhos.
Oculto sob estranhas vestes
na penumbra do quarto
apaguei
a luz dos olhos
sentei-me
tamborete duro madeira velha bamba
sem ruídos.
Os ouvidos embotados
cortaram de mim os rumores da noite
a garganta muda
única e plena aos turbilhões
de pó suspenso no ar
a invadirem o silêncio
das cavernas ocultas
oficina da vida teimosa
exposta ali à frente do espelho
insistente a refletir
miríades de ângulos lascados
a deformidade do cristal partido.
No gesto caduco a mão
acena um anel de ouro
imutável no seu brilho.
O que buscar no passo trôpego
por que ter que ir assim
pelos corredores
à procura da latrina?
Por que arrastar atrás
as chinelas
na monotonia repetida
nesta translação
de saudar o mesmo dia?
Mas eis que corta o caminho o espelho.
Cristal partido
miríades de ângulos agudos
obtusos
a quebrarem a imagem surreal que se assenta.
Num momento
uma réstia de luz sobre
a bandeira da porta
cruza o espaço e se faz diva.
Ah! espelho partido!
Tu estás intacto na moldura velha
intacto a refletir
teimoso na parede da frente
que a água da chuva manchou
que a aranha fez
a teia unindo lado e outro
octogonal
o vão da rachadura
que deixa entrar o vento.
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