Meditações de Narciso IV
Por que procuras, Narciso
o meu rosto
correndo pelos campos
lanhando o corpo nas aspas secas
a dizer meu nome?
Por que assim na procura
por que assim a olhar
nas gotas da chuva
por que chafurdar na lama dos charcos
a se inclinar entre as ramas do junco?
Meu rosto diluído verte
sobre águas corredeiras
contempla o céu
as galhas do bosque
espia entre as tíbias cegonhas.
Meu rosto perdido
em pálida tinta oleosa se expõe
entre pedras e murmura ainda teu nome.
O céu imenso
a abóboda rotunda se curva sobre
mim nas meu rosto desfeito
não se contempla.
Os meus olhos
o meu gesto
onde minha voz?
Onde meu corpo a correr
entre sátiros louco desvairado à procura
do teu nome?
Onde a lagoa calma
onde a pedra o remanso para me encontrares?
Entre pântanos deslizo meu rosto
espio entre os ramos do lírio
a gota do meu espelho.
Onde o elo perdido
o tênue fio rompido
onde as mãos tecelãs a juntar
aqui ali os cacos?
Minha voz responde minha voz.
Sobre minhas retinas minha história
recontada monótona
eco de minha imagem.
Entre rebanhos de ovelhas
meu rosto banha os pés dos pastores.
Em seus odres oculto meus lamentos.
Em seus haustos me procuro
na saliva de suas bocas
na gota de brilho de seus olhos.
Narciso, por que corres
por que procuras onde não estou?
Por que nas aspas ressequidas
lanhas teu corpo
e desnudo inda assim
me buscas no escuro da floresta?
Eu, Narciso, teu espelho.
Tu, Narciso, minha face.
Contempla-me nas águas calmas
onde tu te dessedentas.
Une tua boca à minha boca
bebe-me
e eu te beberei.
Une nos teus os meus olhos
recompõe na tua a minha face.
E nossas bocas numa só boca
digam e sorriam a mesma palavra
e o mesmo vinho seja tragado
na mesma taça.
Que o teu sabor seja o meu sabor
e o amargo e o doce o sabor comum.
Tu estarás em mim
e dentro de ti
estarei sempre
presa de teu gesto
de teu olhar
de tua palavra:
eu, Narciso, teu espelho recomposto
tu, Narciso, meus olhos para a água.
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