Três Mulheres em um Mundo Só

PARTE I: MARÍTIMA

Nasci à noite,

Talvez às dez do horário de verão.

Mas isso não importa.

Chovia uma morna tranquilidade na minha foz,

Tranquilidade pingando em vão

No mundo umedecido

Em que fui escolhi pra nascer.

Chuviscos calmos escorriam do céu

E os trovões baixos,

Sussurrantes,

Cortavam o vento,

Eram lamúrias.

Até a noite chorava e sofria de penúria

Na noite em que nasci.

Nasci logo,

Nasci lago,

Pequena e límpida,

Tímido lago.

No primeiro momento em que me vi no mundo,

As coisas se resumiam em duas:

Nascer e chorar.

Devia ter aproveitar melhor o meu nascer,

Porque daí pra frente seria só chorar.

Minha vida sempre foi úmida.

Seca eu só era por dentro.

As lágrimas se sentiam confortáveis em minhas bochechas

E eu gostava de senti-las assim,

Escorrendo,

Sádicas, quentes,

Sorumbáticas,

Adstringentes.

Meus dias eram nublados,

Minhas tardes eram chuvosas

E as noites, por mais que fossem cautelosas,

Eram nada menos que sereno.

Na manhã seguinte, o dia nascia em orvalho

E asfalto embebido com graça,

E eu deitava no chão frio

E me sentia

Com um rio

Contido e aprisionado

Num corpo humano

De formas tão curvas e oscilantes

Quanto ondas libertas no mar.

Cresci e deixei de ser rio.

Virei cachoeira.

Fui firme, fui bela,

Mas incrivelmente intimidadora.

Escondia atrás da essência os meus segredos de moça crescida

Esperando que um dia alguém

Desvendasse minha transparência,

Minha alvura e liquidez.

Esperava que alguém se infiltrasse em mim

E abrisse as cortinas fluidas que era.

Um dia, ele veio, marinheiro desbravador,

Navegando em águas claras,

Me tocou.

Conseguiu agarrar minhas ondas

E prender minha água no seu abraço.

Podia ter sido Moisés e eu me abrisse em Mar Vermelho.

Mas ele só foi terno.

Meus lábios de umedeceram,

Meu corpo conhecer outros líquidos.

Foi só ele chegar perto e minha pele estava suada

E até minhas partes secas

Em algum momento estiveram

Encharcadas...

Mas a turbulência se abateu sobre as águas.

Dilúvio!

E ele, que não era Noé,

Homem ao mar!

Homem ao mar!

Tragam-no para o convés!

Um dia, ele foi resgatado.

Marinheiro, até hoje me digo

Que fracassado moço tu és!

Como vocês puderam ver, a cachoeira espalhou-se em mar solitário,

Um sozinho e solitário

Mar sem praia

Esquecida.

Pra que tanta água no mundo se ela tá sempre tão sozinha?

Era triste ser marítima,

Era triste ser a última.

Nem as minhas ondas menores

- e ainda assim tão rítmicas –

Foram ondas suficientes para movimentar de modo natural

Minha superfície,

Minha face incompensavelmente

Superficial.

O tempo foi passando e o ciclo se cumprindo.

Eva por ação

Prece pitação

Sublime ação

Um dia, alguém atravessou a margem do rio

E por um tempo foi feliz.

Mergulhou-me com vigor, enquanto eu

Torrencialmente

Fluvialmente

Abrigava-o dentro de mim.

Ele nunca morreu afogado porque sabia respirar

Mesmo onde oxigênio

Faltava.

E de todas as coisas mais bobas que eu podia proporcionar

Ele gostou.

Fomos felizes flertando, ondulando

Em um mundo onde água é boa

Até às sete da noite

E a noite desagua consigo mesma

E seu reflexo refletindo o reflexo.

Naquela casa, toda a noite

Era a noite pra chegar embebido.

Naquela casa, toda hora

Era hora de tornar-se

Ensopado.

O tempo foi passando,

Chuva de verão,

Temporal lá pro fim do outono,

Tempestade de fim de tarde invernal

E escassez de mim primaveril.

(Todo mundo algum momento tem um momento de ser de si própria.)

O rio, por maior que fosse,

Foi embora.

Suas ondas flutuaram,

Sua plenitude levitou por aí,

Sua grandeza levou embora cada gota, peixe, alga, bolha, onda, espuma, oceano,

E tudo isso desapareceu no ar

Em formas omissas chamadas vapor.

Naquele dia, não houve chuva

No meu mundo

Em que nunca mais choveu.

No último momento em que me vi no mundo,

As coisas se resumiam em duas:

Morrer e secar.

Devia ter aproveitado melhor meu morrer,

Porque sequei, ceguei

E em nenhum lugar

Cheguei.

PARTE II: DESACORDO

Desacordo

Desacordada.

Foi assim que ele me partiu ao meio:

Em sonambulismo e consciência,

Noite e manhã,

Sonho

E real idade.

Meus olhos abriram e pela primeira vez me senti viva

Porque eu estava dolorida

E o teto era sujo como a vida.

Tinha cheiro que eu nunca tinha sentido antes,

Mas que sabia

Que era cheiro de mentira, de trapa,

De completo desacordo.

Vivi minha vida assim…

Olhos naquela face branca onde as letras se comprimiam.

Olhos nas bocas que soltavam verdades distantes.

Mãos aprendendo a fazer coisas

Que mãos de mulher fazem

E de homens não.

O porquê disso, eu não sei.

Algumas coisas existem sem explicação.

As multidões me eram indiferentes,

Mas assumo: necessárias de vez em quando.

O corpo por vezes clama

Por toques,

Por corpos na cama,

Mas o meu raramente.

Todo mundo gosta de ter segredos para trocar.

Eu guardava segredos alheios

Mas segredo só meu não havia.

Talvez porque todos soubessem que eu

Era a mesma de todos os dias.

Minha vida foi transparente,

Foi vitrine misteriosa

Que todos olhavam como liquidação.

Nada disso me incomodava.

Eu só queria mesmo era saber da equação

E de seu resultado perfeito.

Me afeiçoei ao xenônio,

Enquanto o tal de hormônio

Era só um bom e curioso conceito.

O dia amanhecia e toda manhã eu abria os olhos

Achando que estava acordada.

Mas minha vida era um sonho,

Desses mais que traiçoeiros

Que começam inofensivos

E se tornam pesadelos

Medonhos, fortes, ferozes, altivos!

Foi quando “ele” apareceu,

Vindo como um vulto num dia ensolarado.

Foi frio no meu deserto,

E eu, que era longe,

Sim… ele me teve perto.

Ele nasceu e morrer assim, feito de contradições.

A principal delas, da qual não gosto nem de lembrar,

Era justamente essa:

Ele sorria de modo inocente, bom,

Carinhoso,

E parecia amar.

Mas em um momento crucial,

Houve o desacordo.

E eu estava desacordada.

Foi quando despertei sem ele para a noite que o mundo era,

E dessa noite me envergonho.

Desesperada, eu só queria voltar a dormir,

Mas não se volta pro mesmo sonho.

A lua não era minguante,

Mas era meia.

Escondia-se fora-da-lei.

Não era dourada, pingava sangue,

Desde que fora estuprada pela luz do astro-rei.

Ficava ali, pendurada no céu, e mesmo exposta,

Ninguém parecia perceber

Que ela só desejava a resposta:

Seria o céu escuro porque era feito dos medos do mundo?

Um dia, percebei que eu não,

Que eu não estava certa:

A lua continuava sendo a mesma, minguante, cheia, dourada.

Eu é que não era a mesma.

Pois agora eu só era a virgem

Que escorregou da nomenclatura

Virgem.

Não-virgem recém acordada.

A lua estava tão só, enxergava a todos de longe,

De cima, isenta,

Dos bastidores do horizonte.

Lá ninguém lhe fazia mal, e eu só queria ser lua. Pra sempre.

A porta fechada virou minha fachada.

Tornei-me opaca.

Abriguei o silêncio

E preenchi meu vazio de medo.

Ninguém é bom no mundo e agora meus olhos estavam arreganhados.

As pessoas diziam que eu precisava de alguém,

Com quem pudesse dividir o mundo.

Mas meu mundo é indivisível, é átomo,

E eu era um elétron ímpar.

O meu mundo era somente meu.

Foi assim que nunca mais dormi

E mantive meus olhos escancarados

Fizesse vento, fizesse sol.

Todo o resto do meu corpo

Fiz questão de trancafiar a sete chaves

Até o fim.

O tempo passou

E até os ponteiros dos relógios tinham uns aos outros.

Mas se você reparar,

Esse ménage a trois nunca aconteceria,

Porque os ponteiros fugiam um do outro, sempre em círculos:

As horas fugindo do ponteiro dos minutos,

Os minutos fugindo do ponteiro dos segundos.

E os três se fugiam em círculos

Porque ninguém era bom no mundo.

Um dia, depois de muitas noites em claro,

E muitas noites viradas, de ponta-cabeça, do avesso, de volta,

Eu pude dormir.

Eu pude finalmente destrancar as minhas pernas.

Porque na completude onde todos cochilam,

O único mal

É não sonhar com a vida eterna.

PARTE III: SOLIFAGIA

Tudo começou quando eu,

Justamente eu,

Percebi que a minha,

Justamente a minha,

Solidão

Era

Sólida.

Feita de silêncios e de raros ruídos surdos,

De ausências e de saudades,

Você me apareceu.

E de primeiro momento, me conquistou

Porque você era quase eu.

O vento dedicou uma leve brisa só para nós

E você aproveitou para me abraçar.

Era um abraço nulo, eu sei,

Que juntamente com todo o carinho,

Inexistente, eu sei,

Me deixou feliz.

Um carinho inexistente totalmente dedicado a mim

Era melhor que carinhos existentes

Que ignoravam minha existência.

E foi naquela tarde,

Numa tarde saudosa que eu

Aprendi a ver, a tocar, a amar a solidão,

Só ela que nunca mesmo

Deixou de me amparar.

Até na minha mais difícil reclusão sentimental

Eu a reencontraria.

A reclusão era ela, afinal.

Todas as solidões são serem infelizes.

Nascem, se arrastam no mundo

E preenchem cada espacinho,

Mas morrem esquecidas, indesejadas,

Ninguém as quer.

Mas nossa afeição era recíproca,

Correspondida.

Você m amparou no meio

Da agonia de mim por mim mesma.

Você me amparou em seu seio.

Eu te encontrava em todo lugar,

De todas as formas

E de qualquer jeito.

Você era a flor da ponta do penhasco dos meus sonhos.

Você era eu, mesmo

Quando vulto no parapeito.

Você era chuva na madrugada,

Era aurora de domingo.

Você era espelho que refletia no escuro.

Você era todo futuro.

Você falava de todas as coisas

E eu ouvia com atenção,

Me sabendo de tudo aquilo

Porque aquilo tudo era eu.

Você falou que toda amizade receberia sua visita,

E que amores roubados, e flores forjadas

E casamentos debaixo do ipê,

Tudo isso terminava

Num café a sós com você.

Houve a noite em que tentei fugir da vida,

Em que tentei sair do mundo,

Mas aí me vi contigo na cama.

Éramos íntimas, éramos ínfimas,

Éramos vítimas do deus que cria

Pra mais tarde ser deus que isola.

Desoladas,

Amamo-nos ali.

Você não era quente, não era fria, era só você.

E eu tentava neutralidade,

Mas falhava, sem saber por quê.

Tentava me desprover de corpo,

Tentava me desprover de alma,

Queria ser apenas sua.

Queria ser outra solidão

E que juntas codesexistíssemos.

Mas eu não conseguia.

Eu era uma pessoa como qualquer outra no mundo.

Não era essa minha vontade.

Minha vontade era desfazer todas as coisas,

Desfazer todas as coisas que fazem as coisas serem só coisas

E fazem você não ser nada

E eu estava ficando louca.

Enlouqueci sozinha, mas contigo sempre ao meu lado.

Não percebi nem um pouco que estava doente

Pela própria solidão.

Objetivo nunca alcançado.

Espatifou-se no chão como um copo de vidro

Suicida

Quando não quer servir mais bebida.

De repente, tudo era branco.

As paredes brancas, o chão, as roupas,

Largas e sempre brancas.

Eu estava pálida e aquela brancura me enjoava.

Procurei-te pelos cantos

Você não estava

Porque lá estava ele.

Entrou pela porta branca, de roupa branca

E nosso futuro branco brotou na frente de nossos olhos.

Ele sorriu (dentes quase brancos)

E pela primeira vez em um momento

Eu te esqueci.

Aos poucos, as cores foram devolvidas

À alvura que havia em torno

Enquanto você era dissolvida

E eu esquecia seu não-contorno.

Minha identidade foi tomando espaço

E expulsando minha diminuta loucura.

Ele me trouxe uma flor amarela

E com flores amarelas,

Eu lembrei do mundo.

Corri o mundo inteiro,

Percorri todos os meus dias e minha curta trajetória,

Instantemente

E joguei-me num banho de glória.

Naturalmente,

Aceitei a mim mesma como humana,

As árvores como árvores,

A vida como minha vida,

E ele

Como

O sorriso que clarearia o resto dos meus dias.

Mas por um momento ele me deixou sozinha

E você reapareceu.

Invisivelmente áspera, provocativa

E irresistível.

Você me fez lembrar que nunca deixavas de estar viva,

Mas eu já não te amava.

Não te queria perto de mim.

Tornou-se indesejável

Como para todos os outros.

E esse era seu pânico.

Você ficou furiosa, de um modo como eu nunca tinha visto!

Declarou-me guerra!

Declarou guerra a mim, a ele, a tudo que se encerra,

A todas as coisas a Terra,

Porque era em mim que querias habitas,

Parasita.

Você queria me transformar

Em sua

Só sua

Solidão aflita também.

Mas eu já não queria estar em todas as coisas,

Não queria preencher o vazio

Nem quebrar a naturalidade do espaço, do tempo, do vento e do mundo.

Eu era uma pessoa e você um sentimento.

Rasguei nossos planos e arremessei-os ao vento.

E ele os levou pra longe, levou-os de volta você,

Pra qualquer lugar onde há lamento

E onde o sol nunca baterá

E onde o amor nunca chegará.

Então você me invadiu

À força.

Lembra?

Você entrou por cada poro,

Se infiltrou nos meus pensamentos,

Infiltrou-se nas minhas memórias e alterou-as

Sem meu mínimo consentimento!

Peou pessoas do meu passado e as atirou do precipício,

Criou imagens irreais,

Que me agonizavam,

Fez da minha sensibilidade um tremendo desperdício!

Você me deixou cada vez mais perdida na insanidade

Que você construiu pra eu

E você

Sermos felizes.

E ali estávamos nós.

Nos encarando

Pela

Última

Vez.

Você abriu os braços e disse:

Agora, do mundo, o escasso

Será totalmente seu.

E eu fui.

Sim, eu fui

E me joguei com violência pra dentro de ti,

Pra bem no fundo mais profundo de ti.

Me atirei pra solidão com tanta certeza,

Que encontrei lá

O fim perpétuo de nossa tristeza:

Solidão são ausências.

As ausências são partidas,

São portas batendo, abandono,

Poeira correndo para o fim da rua.

Ausências são tudo aquilo em que nada há

Nem ninguém há.

Mas no fundo mais profundo de cada solidão,

Mesmo que seja uma solidão voluntária,

Há uma vontade,

Pequena e sincera vontade,

De pelo menos somente um dia,

Não ser mais

Solitária.